Uma das características da poesia brasileira no e do século XX foi a de ter se organizado sob a “forma” de movimentos literários, cíclicos, que se expandiam para outros ramos da arte — ecoando vanguardas e retarguardas, no início européias, e, depois, norte-americanas. “Forma” aqui empregada no sentido de Ludwig Wittgenstein, do “Tractatus”: “A forma é a possibilidade da estrutura”. O primeiro desses movimentos, o modernismo, desencadeado em 1922, por Mário e Oswald de Andrade, propôs questões que permancem vivas até hoje, como, por exemplo, as lançadas pelo “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, de 1924 (O. de A.), das quais cito algumas, que foram encontrar respostas afirmativas no Concretismo de 1956 e no Tropicalismo de 1967. (O movimento da “Poesia Marginal”, de 1975, pode ser visto como um dos desdobramentos do Tropicalismo sobretudo no Rio de Janeiro, tendo-se em mente que o Tropicalismo foi, sob certo ângulo, uma releitura, no âmbito da massa, do Modernismo. A “Poesia Marginal” explorou detalhes modernistas como o “poema-piada” e resolveu precariamente o tópico da reinvenção de uma poesia coloquial).
Oswald: “A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária”.
“A poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro, compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente”.
Andrade concluia seu manifesto propondo que fossemos: “Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia, de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio…”. Aqui, se concentram questões que, cada poeta, de cada movimento, por a ou por b, entre eles mencionaria o da “Geração de 45” — inspirado em parte no academicismo anglo-americano (Nova Crítica) dos anos 30 e 40 (Eliot, Lowell, Bishop, sim, e Frost, entre tantos) — cada um, a sua maneira, procurou responder.
Poesia brasileira de exportação, isto é, uma poesia que passasse a dialogar ativamente com outras literaturas e que deixasse de ser receptáculo passivo de influências, deixasse de ser “periférica”. A mata resumida das gaiolas. A cidade, brasileira. O jornal, brasileiro. Uma inflexão brasileira que pudesse dialogar com independência e originalidade com outras culturas, num período de evoluções.
Embora vivos e essenciais, os variados desafios lançados pelo Modernismo, e não só por Oswald, encontraram respostas contundentes nas poesias de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes e, depois, nas de Vinícius de Moraes e João Cabral de Melo Neto. Adiante, tais desafios foram retomados pelo Concretismo, que, entre tantos méritos, reafirmou a necessidade de uma atuação de cunho exploratório, experimental, como o principal caminho para a criação de uma poesia brasileira, de caráter inaugural, que se irradiasse. O Concrestimo (Neoconcretismo e outros) , além de ter reinventado a tradução literária, lançou e ou atraiu, mesmo que temporariamente, bons poetas, menos ou mais vinculados, como o sofisticado Haroldo de Campos, já nem tão “concretista”, de “A Educação dos cinco sentidos” (1985) ou de alguns fragmentos de “Galáxias”, Augusto de Campos, mais marcadamente até o início dos anos 80, Ferreira Gullar, com seus altos e baixos, Afonso Ávila, José Paulo Paes, Décio Pignatari e o surpreendente Edgard Braga — sem falar de Mário Faustino, morto precocemente. Esta questão, a do exploratório de cunho brasileiro, permaneceu viva no Tropicalismo de Caetano Veloso e de Torquato Neto, para, a partir dos anos 70, ir se perdendo na pobreza de resultados, na falta de recepção crítica e, sobretudo, nos discursos de militância de movimentos, grupos e críticos literários. Sintoma de quais esgotamentos? Uma das causas foi, seguramente, a ditatura militar, que se iniciou em 1964 (Gullar foi perseguido e o Tropicalismo acabou em exílios) e só se encerrou, apenas formalmente, em 1985. A outra, o declínio da utopia socialista. Noto, aqui, que o movimento da “Poesia Marginal” refletiu explicitamente, com a distribuição de livros mão à mão, com o mimeógrafo, com as leituras e agitação, formas com as quais se resistia à ditatura e à censura.
Neste sentido, as propostas coletivas do Concretismo (uma delas: a de rompimento com o conceito “romântico” de autoria) e do Tropicalismo, de reafirmação do exploratório numa perspectiva local/universal, foram se congelando — à revelia ou não —, ao menos, na obra de vários (não na de Caetano Veloso, por exemplo, apesar de momentos de queda), em “normas” de escolas lítero-musicais — o que permitiu, por um lado, o reagrupamento de poéticas conservadoras, avessas às mudanças sociais e estéticas e, por outro, o aparecimento de respostas criativas individuais (Paulo Leminski, na literatura, e Itamar Assumpção ou Duofel, na música, para não falar de outros campos), com a desvantagem de serem elas pouco visíveis, à questão fundamental de uma poesia (arte) brasileira de invenção. De passagem, entre as poéticas conservadoras de hoje, arrolo, para permanecer no campo da escritua, um vago neomodernismo, um claro neoparnasianismo ou na verdade neopenumbrismo? (grandiloquência, metros fixos utilizados a sério, temas elevados) e, de uma década e meia para cá, um visualismo de repetição.
“O fixo, o subsistente e o objeto são um só”, como anotaria Wittgenstein. O saldo, porém, mais grave da ausência de uma “agenda” de inovação coletiva e renovada, diversa, foi o do estabelecimento de um autoritarismo, de caráter publicitário, na ação e reflexão de poetas, críticos e professores universitários, com a propagação da verdade da existência de um “modelo único”, de inovação ou de conservadorismo. Ou isto ou aquilo. Reergueram-se, num paradoxo, as fronteiras entre o bem e o mal. E a resposta à questão de como “apenas (sermos) brasileiros de nossa época” deixou, no aspecto coletivo, de ser sequer tocada. Quase todos passaram a aceitar, passivamente, este ou aquele rótulo, e a acatar, internamente, a idéia de “pós-modernismo”, difusa e pouco conceituada.
NOVA POESIA BRASILEIRA
Talvez, Torquato Neto tenha pressentido esta situação de crise no poema “você me chama”, pós-tropicalista (início dos anos 70): “você me chama / eu quero ir pro cinema / você reclama / e o meu amor não contenta / você me ama / mas de repente aquele trem já passou / faz tanto tempo / aquele tempo acabou”. Torquato, aqui, inventa uma nova poesia coloquial, diferente da modernista, enfrentando o abismo existente entre português escrito e falado. O poema é uma espécie de “transcrição” de fala. Todavia, o que importa destacar nele é sua consciência: consciência, inicialmente, ingênua (“quero ir pro cinema”), amorosa (“meu amor não contenta”), para, numa revelação, abrupta também na linguagem, se voltar como consciência de que toda uma época se acabou: “faz quanto tempo / aquele tempo acabou”. Numa perspectiva de ‘poética da hesitação “, Torquato pergunta e, simultaneamente, responde. A percepção de que “aquele tempo acabou” e de que “existe” um vazio encontra eco na poesia dos anos 70 e 80. (É de se notar que existem semelhanças, coincidentes, e não mecaqueamento, entre a L=a=n=g=u=a=g=e Poetry — EUA, anos 80 — poesia da linguagem do pulmão, lung, com os textos dos dispersos autores brasileiros).1
Ana Cristina Cesar escreve (1982): “A história está completa: wide sargasso sea, azul / azul que não me espanta, e canta como uma / sereia de papel”. O azul que não espanta a sereia, irônica, de papel. A consciência — irresignada — de um momento de perda de capacidade criativa está presente em todo o trabalho de Cesar. Veja-se no poema que, a seguir, cito, como a “carta certa”, a “correspondência completa”, o “trem os trilhos” vão se esvaindo, se desarticulando no vazio ou na constação do vazio em “meu salto alto (…) / a espera do café”: “quando entre nós só havia / uma certa carta / a correspondência completa / o trem os trilhos / a janela aberta / uma certa paisagem / sem pedras ou / sobressaltos / meu salto alto / em equlíbrio / o copo d’água / a espera do café”. O poema expressa o desaparecimento de uma determinada “paisagem cultural” e se inconclui na ambiguidade do “copo d’água” ao lado da espera do café. Água, aqui, funcionando como um espaço de vitalidade.
A “certeza” de que “aquele tempo acabou” reaparece, numa de suas interpretações possíveis, no “Teatro Ambulante” (1977-1990), de Duda Machado — que relata, numa paródia, a estória de atores, que representaram, por três anos, a mesma peça e que, com rotina e sucesso, foram se alienando do texto original. O poema retrata o mal estar provocado pela “perda do original” e, ironicamente, a felicidade do reencontro com ele mas, agora, somente na condição de repetição ou de “escola”: “Nos camarins, os atores mal conseguiam se entreolhar. Só mais tarde quando já jantavam no restaurante do hotel, é que se sentiram capazes de reconhecer com excitação que haviam seguido diálogo por diálogo, cena por cena, a peça original… “.2 A poesia de Duda, em outro texto, “Acontecimento” (1977-1990), retoma a necessidade de inovação, agora, com inflexão afirmativa, plena, diversa das propostas pelos movimentos dos anos 50 e 60: “qualquer / algum ninguém / um outro / que / por sua vez / miragem / de reflexos espelhados / ponto / de intersecção do real / foi / está escrito “. O sujeito deixa a forma de miragem (impossibilidade) ou de reflexo espelhado (copista) para, com trânsito no tempo real, no tempo do agora, se afirmar: “está escrito”.
A retomada do tom de inovação — de forma diversa (no Brasil, mais do que a “angústia da influência”, há a “angústia do influenciador”) — foi uma das constantes da vida e obra de Paulo Leminski. Algumas de suas linhas, extremamente críticas e amargas, podem ser lidas nesta direção: “apagar-me / diluir-me / desmanchar-me / até que depois / de mim / de nós / de tudo / não reste mais / que o charme”, peça de 1979, cuja força repercutiu, de algum modo, poucos anos mais tarde, no “pós-tudo”, de Augusto de Campos, publicado em 1985 . Ou, agora, mais afirmativo: “nada que o sol / não explique (…) / não tem chuva / que desbote essa flor”.
Entretanto, há, em seu trabalho, um poema, publicado em sua segunda coletânea, “Polonaises” (1980), que sintetiza as tensões que aqui procuro trabalhar de inovação e contemporaneidade — numa perspectiva brasileira, de independência e diálogo: “um dia / a gente ia ser homero / a obra nada mais nada menos que uma ilíada / depois / a barra pesando / dava pra ser aí um rimbaud / um ungaretti um fernando pessoa qualquer / um lorca um éluard um ginsberg / por fim / acabamos o pequeno poeta de província / que sempre fomos / por trás de tantas máscaras / que o tempo tratou como flores “.
A peça é das mais densas, tematizando questões de imitação, provincianismo e outras, presentes em toda a poesia brasileira do século XX. (Continuamos, ao cabo, “depois de tudo”, uma poesia forte porém com írrita irradiação mundial). Vou, todavia, enfocar, neste passo, apenas um aspecto: o do resgate — por negação — da capacidade de inovação e distinção, para além do discurso das militâncias, da poesia contemporânea que se faz no Brasil. A propósito deste poema, recito Wittgenstein: “É essencial para a coisa poder ser parte constituinte de um estado de coisas”. Movimentos literários, isto é, novas “normas” de percepção, por uma via, (simbolismo francês, futurismo português, surrealismo, poesia beat etc) são repensados (ironizados) por meio de seus autores (o futurismo português é mais importante do que o autor Fernando Pessoa?), para, no verso final, protegidos pela voz do poeta (por várias razões, na primeira pessoa do plural), serem desconsiderados à condição de “máscaras” — que, castigo de profeta, foram tratadas como flores (vida breve). A consciência da provisoriedade de todos os cânones, anticânones, revisões, é a pedra-de-toque desta peça, que, constituindo um novo estado de coisas, desloca o “escolástico” e enfatiza a necessidade da invenção de um OUTRO, — qualquer algum, ninguém — que, entretanto, pouco visível, está escrito.
* Conferência apresentada no encontro “Declínio da Arte”, em Florianópolis, promovido pela ABRALIC e por Raul Antelo.
Notas
1. Para uma aproximação ao conceito de Language Poetry, movimento que se recusou à escola e também à idéia mesma de movimento, num sentido tradicional , transcrevo trechos da introdução de Douglas Messerli à antologia “Language Poetries”, New Directions, 1987: “… For these poets, language is not something that explains or translates experience, but is the source of experience. Language is perception, thought itself;and in that context the poems of these writers do not function as “frames” of experience of brief narrative summaries of ideas and emotions as they do for many current poets…”. Ou, ainda: “Language is not a movement in the tradicional art sense, since the value of giving an aesthetic line such profile seems counterproductive to the inherent value of the work …”.
2. Veja-se a coincidência do texto “My Life”, de Lyn Hejinian, posterior a “Teatro Ambulante” com o próprio “Teatro”, de Duda Machado. Aqui, transcrevo o início do poema de Hejinian: “Summers were spent in a fog that rains. I had claimed the radio nights for my own. The were more storytellers than there were stories, so that everyone in the family had a version of history and it was impossible to get close to the original…”. In “Language Poetries”, New Directions, 1987, página 34.