“Século breve” é expressão cunhada pelo historiador britânico Eric Hobsbawm (n. 1917, Alexandria, Egito) para designar o século XX, que, para ele, em a Era dos extremos / O breve século XX, inicia-se em 1914, com a Primeira Grande Mundial, e se encerra em 1991, com o fim da corrida armamentista. Para Hobsbawm a Guerra Fria terminou quando as superpotências (Estados Unidos e União Soviética) “reconheceram o sinistro absurdo da corrida nuclear e quando uma acreditou na sinceridade do desejo da outra de acabar com a ameaça nuclear” (obra citada, p. 246). O historiador atribui o gesto mais a Mikhail Gorbachev do que a Ronald Reagan, embora reconheça que este, apesar da retórica da “Guerra nas Estrelas”, não pode ter o seu papel ignorado: “Não vamos subestimar o papel do presidente Reagan, cujo idealismo simplista rompeu o extraordinariamente denso anteparo dos ideólogos, fanáticos, desesperados e guerreiros profissionais”. A Guerra Fria, última etapa do “século breve” terminou com as conferências de cúpula de Reykjavík (1986) e Washington (1987). Hobsbawm separa a extinção da União Soviética do término da Guerra Fria, entendo-as como coincidência. Para ele, a economia soviética, com suas inovações tais como o planejamento econômico, havia perdido sua pujança logo depois do fim da Segunda Guerra e se estagnado a partir da era Leonid Brezhnev, que foi secretário-geral do Partido Comunista de 1964 a 1982 e presidente de 1977 a 1982.
A queda do Muro de Berlim, em 1989, deduzo, foi mais uma das coincidências, atribuível igualmente à bancarrota econômica da União Soviética e de seus satélites no mundo todo, exceto a China – aliada comercial dos Estados Unidos desde as articulações de Richard Nixon nos anos 1970 – década na qual começa a última etapa do “século breve” – a do capitalismo financeiro global, sem lastro na soberania dos Estados nacionais. O pensador escreve: “Não foi o confronto hostil com o capitalismo e seu superpoder que solapou o socialismo. Foi mais a combinação entre seus próprios defeitos econômicos, cada vez mais evidentes e paralisantes, e a acelerada invasão da economia socialista […] pela capitalista” (p. 247). Para ele, a derrocada da União Soviética foi equivocadamente vista como “vitória americana”, quando os Estados Unidos nem sequer a imaginavam, e dela foi feito uso político, para alavancar a nova economia transnacional.
Hobsbawm enumera exaustivamente, no livro mencionado, as características desse “século breve”, e entre elas destaco o que ele chama de “destruição do passado”, a qual adjetiva de “lúgubre”: “os mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal às das gerações passadas. […]. quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da era que vivem” (p. 13). Fala de um século de guerras de massa e de genocídios, do século da bomba atômica de Hiroxima e Nagasaki e das inovações tecnológicas que alteraram por completo a vida no planeta. O “século breve” é para ele um período de ruptura com oito séculos anteriores. O historiador vê a Primeira Guerra Mundial como a perda da centralidade europeia no mundo e o sintoma armado da ruína do liberalismo europeu do século XIX. Já em 1913, os Estados Unidos eram a maior economia do mundo. Vê no ressentimento da derrota alemã o surgimento de Adolf Hitler e o estopim para a Segunda Guerra, que uniu União Soviética e Estados Unidos contra o nazifascismo, em virtude da tradição humanista de seus sistemas de governo; embora um fosse liberal e o outro comunista, para ele, tinham uma base iluminista comum. O inimigo maior não era o comunismo soviético para os americanos, mas o totalitarismo de Hitler e Mussolini.
Segundo Hobsbawm, o fim da Guerra Fria retirou de repente os esteios que sustentavam o sistema internacional e as estruturas dos sistemas políticos internos (nacionais) mundiais. De 1945 a 1970, ele recorta o que chama a “Era de Ouro” do “século breve”, na qual as inovações e riqueza soviéticas emularam e reformaram o capitalismo estado-unidense e seu apêndice europeu, no qual ex-inimigos, como Alemanha Ocidental e também o Japão, no Oriente, alinharam-se aos americanos. São as duas décadas e meia de estabilidade, riqueza e certa justiça social.
A etapa final do século é, de acordo com ele, marcada por inovações de mercado que desestruturam as sociedades, os direitos dos cidadãos, e o próprio capitalismo anterior: “O novo método, iniciado pelos japoneses, e tornado possível pelas tecnologias da década de 1970, iria ter estoques menores, produzir o suficiente para atender os vendedores just in time (na hora) e de qualquer modo com uma capacidade muito maior de variar a produção de uma hora para outra. […] Não seria a era de Henry Ford mas a de Benetton” (p. 394). Hobsbawm fala de recessões frequentes nessa etapa final: “A economia global não desaba […] embora a Era de Ouro acabasse em 1973-75 como alguma coisa bem semelhante a uma depressão cíclica bastante clássica” (p. 395).
Faz, ao final da extensa obra – obrigatória para quem quiser entender o presente – uma advertência: “O futuro não pode ser uma continuação do passado e há sinais de que chegamos a um ponto de crise histórica. As forças geradas pela economia tecnocientífica são agora suficientes para destruir o meio ambiente, ou seja, as fundações materiais da vida humana”. O livro é de 1994 e de algum modo antecipa a atual depressão econômica – causada pelo capitalismo financeiro – que só aqui no Brasil é vista como já “vencida”, “superada”. E prossegue: “As próprias estruturas das sociedades humanas, incluindo mesmo algumas das fundações sociais da economia capitalista, estão na iminência de ser destruídas pela erosão do que herdamos do passado. Nosso mundo corre risco de explosão e implosão. Tem que mudar” (p. 562).
Autores como Joaquim Estafanía questionam a ideia de “século breve” de Hobsbawm e veem na atual “grande recessão” mera sequência das crises cíclicas da segunda etapa da Era de Ouro, iniciada em 1973-75. Concordo em parte, pois havia até a queda do Muro opções ideológicas distintas ainda vivas. Hobsbawm vê, em seu livro, coerência temporal entre a Primeira Guerra e a Era da Decomposição (1973-75), que para Estafanía persiste. Para ele, as bases do atual débâcle são as mesmas identificadas por Hobsbawm entre 1973-75, que se agravaram após a queda do Muro de Berlim. O mais interessante é que de 1914 a 1989 o mundo experimentou uma variedade de ideologias (democracia liberal, social-democracia, socialismo, comunismo), que moldaram – para o bem e para o mal – experiências humanas ao menos minimamente diversificadas. O Surrealismo dos anos 1920, de André Breton, foi um movimento que se preocupou mais com a imaginação do que com o resultado formal de seus objetos e textos. Depois da queda do Muro de Berlim, há um mundo sem imaginação, de um só modelo, um mundo do pensamento único, com concentração absurda de riquezas nas mãos de poucos e pobreza generalizada. É o mundo da rasura dos direitos. O mundo do aquecimento global, da destruição da natureza e da vida, ignorado pelas empresas e governos no dia a dia e “celebrado” pelas cúpulas marqueteiras de G-20 etc. É, sob o disfarce da democracia, o mundo totalitário do pensamento único, que nem Adolf Hitler sonharia.