BONVICINO, Régis. Estado Crítico. São Paulo: Hedra, 2013, 114p.
Por Victor da Rosa*
Em Estado crítico, recente livro de poemas do paulistano Régis Bonvicino, deve chamar a atenção primeiro os materiais usados, às vezes temerários, quase sempre antipoéticos e jamais solenes. Em resumo, com atitude despojada, Bonvicino escreve sobre tudo que está aí: o anúncio do Crédito Mútuo, uma croata sexy, os jardins de Babur, o edifício do Bank of China, um cachorro morto, outros animais abandonados, cidades devastadas e sujas, Dior, mendigos na calçada, mensagens SPAM, Facebook, Chanel, Citroen, línguas diferentes, cenas em países variados, um cartão postal do Word Trade Center, CIA, a própria poesia, enfim, assuntos que se alternam com a velocidade da própria banalidade, como se fosse uma letra de rap.
“Tempus fugit”, se não é a melhor peça do volume, torna-se ilustrativa nesse sentido: ao buscar uma definição do Facebook, Régis necessariamente desce ao chão. “No Face, vai chegar a nossa vez / Hoje envio os parabéns / ao poeta Ron Silliman, 66”, confessa o poeta, sem qualquer constrangimento, misturando a dicção coloquial e uma espécie de senso de humor involuntário, mas ao mesmo tempo cáustico e sombrio, como neste outro poema, “Desenlace”: “sob o viaduto / sala e quarto”, lemos nos primeiros versos.
Seja como for, passado algum tempo, o que importa não será tanto a variedade do material, mas sobretudo o arranjo disso. Na apresentação do livro, o crítico Alcir Pécora, após enfatizar que Régis faz uma poesia que é uma crítica da poesia e ao mesmo tempo sua reafirmação, identifica um movimento que descreve como “estratégia de choque imanentista”, ou seja: o poeta “joga as imagens recolhidas umas contra as outras, em busca de sobreposições, de simetrias internas, dos sons e ritmos de sua colisão”. Por sua vez, Silviano Santiago, em resenha de Página órfã, livro anterior de Régis, com o qual aliás Estado crítico guarda numerosas semelhanças, também já chamava a atenção para uma “técnica de montagem (cinema) ou de colagem (artes plásticas)”. Às vezes tenho também a impressão de que Régis vem fazendo uma espécie de cover (cópia, proteção, disfarce) de um poema que nem chegou a existir.
A orfandade do poeta consiste na falta da própria poesia, além do mais. Seus diversos poemas sobre o assunto, embora na maioria ambíguos, repletos de pistas falsas que procuram causar mais a confusão do que o esclarecimento, não são outra coisa senão crítica de poesia. Nessa série, que também não é autônoma em relação a outras, os poemas que me parecem mais exemplares são “Poema negativo”, que abre o volume, “Tortura” e o próprio “Estado crítico”, que sugere imagens como “Baudelaire parcelado em sete vezes”, “Jean Genet tratável” e “a tradução de Sá Carneiro / para o português”, curiosas definições de um estado crítico – da poesia.
Assim, Régis Bonvicino irá definir também o poema (quem sabe se o próprio poema ou talvez aquele que não chegou a existir) de diferentes maneiras: “este poema / é um SPAM”, que “ataca imprevisto o espaço alheio”; objeto que “não chama atenção” e “não tem futuro”, por ser “igual a milhares”, ou seja, “um cover de Bob Dylan”; “atraso de vida”, “desserviço”, “masoquismo” etc. Lembrando mais uma vez o comentário de Pécora, o livro faz do movimento “em torno dos impasses da própria poesia” sua principal linha de ação. Mas não a única.
Em outra delas, estado crítico não seria a condição apenas da poesia, que “respira por aparelhos”, e sim, a rigor, do mundo: “Deus à paisana”, sugere a imagem de um dos poemas, que resume à sua maneira tal desacordo. Descrições que procuram sugerir um espaço em estado de permanente conflito, às vezes em ruínas (animais comendo lixo, mendigos dormindo na porta da Lacoste, um prédio fedendo à fritura, gente reencarnando em rato, enfim), são cortadas como em um zapping, a ponto de não deixarem os poemas recaírem em denúncia, embora seus efeitos possam correr nessa direção.
Finalmente, merece destaque a qualidade de Régis Bonvicino como imagista, sem dúvida um dos traços que acompanha sua obra desde os primeiros livros, bastando citar dois títulos: Céu-eclipse e Ossos de borboleta. Em meio a “jogo de palavras, baratas, / a fim de preencher as páginas / de mais um livro”, segundo mais uma de suas ironias contra a literatura, lemos também imagens raras, como a de um poema sobre Hong Kong: “as letras se movem no casaco / enquanto respira”, ou em “Fábula (2)”, que termina assim: “a borboleta se transforma em pedra / sua asa, no entanto, se projeta”, última sugestão afinal da condição do poeta.
*Victor da Rosa, ensaísta, doutorando em Literatura pela UFSC.