
Haroldo de Campos e Régis Bonvicino em 27 de junho de 1983
Haroldo de Campos
“Não mais, Musa, não mais, que a lira tenho/ Destemperada e a voz enrouquecida,/ E não do canto, mas de ver que venho/ Cantar a gente surda e endurecida.”
Assim Camões, n’Os Lusíadas (Canto X, 145), dirigia-se a seus conterrâneos do Quinhentos, sobretudo aos da Corte de El-Rei Dom Sebastião, seu primeiro auditório.
De fato, o descompasso entre poesia e público não é um fato apenas contemporâneo, mas tem precedentes históricos ilustres, embora, com toda a certeza, no mundo das Revoluções Industriais e da alta tecnologia de massa, a situação tenha-se agravado a um ponto extremo. Não à toa, desde os anos 1960, vem Décio Pignatari falando do mister poético em nosso país (e não só em nosso país) como uma atividade “gratuita e clandestina”. Por outro lado, Hoelderlin, um desses grandes poetas marginalizados por escapar ao limiar acústico de seu tempo (e ser incompreendido, inclusive, por alguns dos mais notáveis intelectuais coevos, como Goethe, Schiller e o helenista e tradutor Voss), equacionou com clarividência a miséria e a grandeza do ofício poético: “A linguagem, o mais perigoso dos bens; poetar, o mais inocente dos afazeres”. Essa frase me veio à lembrança, quando li uma recente entrevista de H. M. Enzensberger a Nelson Ascher. Perguntando sobre o tema, o destacado poeta e pensador alemão, meu contemporâneo de geração, respondeu: “Quanto à poesia, não há mercado para ela. E isso é bom. Quer se seja desconhecido ou famoso, não se pode ganhar dinheiro com poesia. Isso é um privilégio, pois assim não há como ser capturado ou deformado. Há nela, portanto, uma imensa liberdade”.
Nesse sentido, é um fato auspicioso que uma editora como a Perspectiva, que jamais se preocupou com o marketing cultural em termos de opção preferencial, mas que investiu, precipuamente e a longo prazo, no enriquecimento de nosso patrimônio bibliográfico, tenha conseguido manter ‒ e venha mantendo ‒, desde 1971, há mais de duas décadas, portanto, uma coleção como a Signos, que tenho a honra de dirigir graças à confiança de Jacó Guinsburg. Uma coleção que, de Joyce a Mallarmé e a Rimbaud; de Cortázar a Vasko Popa; de Dostoievski a Khlébnikov e a Maiakovski, de Goethe aos provençais e à poesia bíblica, tem-se empenhado, com amor e rigor, na promoção da literatura de invenção em nosso país. É esta coleção que chega ao seu volume 18 com Primeiro Tempo, de Régis Bonvicino, na sequência de lançamentos nacionais que contam com nomes já consagrados como Affonso Ávila e Augusto de Campos, e jovens poetas de talento. Régis Bonvicino, que reúne no livro ora publicado os poemas de sua primeira fase, já é um nome firmado, reconhecido como dos mais representativos de nossa poesia nova, na geração posterior à do saudoso Paulo Leminski (esta correspondente, na literatura, à de Caetano Veloso na música popular). Seus poemas distinguem-se por um peculiar manejo da dicção “coloquial-irônica” (Edmund Wilson), que radica no lado talvez menos conhecido do Simbolismo francês (um lado que repercutiu decisivamente na “logopeia” do primeiro Pound e do primeiro Eliot). Poeta sobretudo urbano, capaz de sobriedade lírica, de imagem cortante e de causticidade crítica e autocrítica, Régis é muito bem-vindo a esta coleção com seu Primeiro Tempo, instigante e convincente marco inicial de uma carreira poética a esta altura já plenamente amadurecida e consolidada.