Há um encontro íntimo e bem sucedido entre poesia e filosofia nos poemas de Michael Palmer, inclusive, nos que ele reuniu sob o título At Passages1 (Nas Passagens), que acaba de ser lançado nos Estados Unidos. Nascido em 1943, Palmer — que reside em San Francisco, Califórnia, com mulher e filha — é um “independent writer”. A informação não é gratuita se se tem no horizonte que a Language Poetry é ainda um movimento relativamente ativo, que se irradiou por todo aquele país, a partir de San Francisco e de Nova York. Exemplo de “language poets”: Charles Bernstein e Lyn Heijnian. Embora não seja um “language poet”, a poesia de Palmer tem alta consciência de linguagem — precisamente no sentido que Mikhail Bakhtin2 empresta ao termo: “O enorme trabalho do artista com a palavra tem por objetivo final a sua superação […]. O artista liberta-se da língua em sua determinação lingüística não ao negá-la mas graças ao seu aperfeiçoamento imanente. O artista como que vence a língua graças ao próprio instrumento lingüístico e, aperfeiçoando-a lingüisticamente, obriga-a a superar-se a si própria”.
Essa superação, no caso de At Passages, escrito — como já o seu livro anterior Sun 3 (1988) — nas fronteiras da filosofia e da poesia, contém uma tentativa de ampliar a compreensão da realidade e de criticá-la: “Certas palavras e imagens/ ou parte de imagens/ se lascaram/ Freqüentemente aparecem à venda// na calçada, tendas,/ ante os muros// de outras cidades// Eu também tenho uma imagem à venda:/ É a imagem de um poema// e pode ser achada/ no reverso desta página”. Um dos versos do início desse poema “Revelações” remete à poesia de Wallace Stevens e especificamente a um poema intitulado “O vidro índigo na relva”. Palmer: ” Sob o escrever no muro / está o escrever designado / obscuro. Os dois juntos / formam um terceiro tipo… “…. Stevens: “Qual é real —/ Essa garrafa de vidro índigo na relva,/ Ou o banco com o vaso de gerânios, o/ colchão manchado e o macacão lavado secando ao/ sol?/ Qual destes contém na verdade o mundo?/ Nenhum dos dois nem os dois juntos” (“The indigo glass in the grass”) 4.
Impressiona em At Passages, que reúne cerca de meia centena de textos, a elegância e a precisão do verso longo, muito mal praticado aqui no Brasil. Veja-se: “Our errors at zero — milk for mist, grin/ for limbs, mouths for names — or else hours of barks.” (“Nossos erros ao zero — leite para a névoa, riso/ a limbos, bocas para nomes — ou horas tantas de casca…”). Palmer, em suas peças, não entrega de pronto os sentidos para o leitor. Seus textos, sempre sóbrios, às vezes, misteriosos e lúdicos, trabalham com uma espécie de câmara de eco de significados — o fim dos poemas explicitam seus inícios. Comparando os poemas de Palmer aos de Paulo Celan, Marjorie Perloff anota que o absurdo e tenso deslocamento, que as pessoas experimentam no mundo pós-urbano deste fim de século, é um dos temas principais de seu trabalho: “Aos circos das redes/ no primeiro rasgo/ margem de uma imagem/ a unidade das distâncias/ entre o olho e a pálpebra”. Palmer parece por outro lado cumprir o roteiro que William Carlos Williams estabeleceu para si mesmo e para a poesia: o poeta pensa com seu poema. E pensar com o poema quer dizer apreensão do mundo a partir de ritmos, jogos de sintaxe etc. A poesia de Palmer é também experimental, mas experimental no sentido em que Robert Creeley 5, sempre com bom humor, definiu o termo: “só se o mental dessa palavra significar consciência de pensamento e de materialidade da linguagem”. Palmer reflete sobre “os baixos” da condição humana. E lembra, de algum modo, o “Retrato de poeta”, de João Cabral 6: “O poeta de que contou Burgess,/ que só escrevia na latrina,/ quando sua obra lhe saía/ por debaixo como por cima,/ volta sempre à lembrança/ quando em frente à poesia/ meditabunda que/ se quer filosofia…”.
Cabe, neste passo, apontar as semelhanças entre os poemas “Disclosures” (“Revelações”), de Palmer, e “Retrato do poeta”, de Cabral. O poema extraído do muro (das ruas) e o poema escrito a partir da latrina. Estas semelhanças ganham ainda mais visibilidade se pensadas na perspectiva bakhtiniana do “baixo corpóreo”. Aponta Bakhtin 7 que o traço fundamental do realismo grotesco é o rebaixamento, a transferência do campo de atenção para o plano material e corporal, da terra e do corpo, em sua unidade indissolúvel, em contraposição ao plano ideal e abstrato. Anota o ensaísta que o “baixo” tem caráter renovador e regenerador em sua ambivalência, diferentemente da escala de valores da atenção abstrata. No poema de João Cabral, a síntese entre consciência e “baixo corporal”, com função regeneradora, ocorre na palavra “meditabunda” e na derivada “meditabúndia”. Reflexão, meditação e bunda, traseiro nas palavras de Bahktin. A atenção (do latim, attentione), aplicação cuidadosa da mente a alguma coisa, concentração, volta-se para as partes baixas do corpo a fim de retirar delas seu caráter negativo. O trocadilho e a troca de sinais (menos pelo mais) se estabelece com clareza: “Pois tal meditabúndia/ certo há de ser escrita/ a partir de latrinas/ e diarréias propícias”. O vocábulo “meditabundo” transfigura-se no neologismo (ganha o texto com esta leitura) “meditabunda”, para designar, com ironia, aquele que medita “profundamente”, num sentido quase literal. Escritura enquanto fezes, na verdade, enquanto terra, reinício regenerador de alguma coisa afetada por ideais e abstrações. Recuperação do referente (Jakobson) por meio do baixo corpóreo. Massa fecal e massa cerebral, reunidas, na unidade terra/corpo.
Em Michael Palmer, de “Disclosures”, tal “operação de transferência” ocorre de modo similar mas não idêntico. O “baixo corpóreo” bakhtiniano aparece, num primeiro momento, com o sinal ainda negativo: “Fabius Naso/ fala pelo rabo/ e caga pela boca”. Trata-se de violenta crítica ao esvaziamento da reflexão, de modo geral, na sociedade atual. O que se diz e o que se “pensa” é merda. Só alguns sabem pensar? Deslocamentos e determinações de fora (sociedade), que atingem o corpo dos indivíduos. Todavia, não se pode deixar de anotar a ambivalência de significados, do ponto de vista bakhtiniano. Corpo e terra, em sua unidade indissolúvel, estão presentes como pano de fundo (no ato de defecar e, na fala, que exige boca aberta). Registre-se ainda a presença do elemento “terra” no muro (barro). O “baixo corpóreo” surge também no verso “Foutes les arabes”. O ato de foder, vinculado às partes baixas (negativas) do corpo, numa época, por exemplo, de AIDS e de discriminação étnica; o verbo, neste caso, significando também “danem-se os arábes”. O processo de “rebaixamento” (Bakhtin) do poema pode ser reparado em alguns outros detalhes: o único personagem identificado chama-se “Fabius Naso”. Naso, de nazista, mas também de nariz, nariz grotesco, tanto que o passa a identificar. Operação de transferência. Por que o escrever no muro (grafites sobre grafites, em efeito de saturação) é, afinal, designado obscuro? A resposta se inicia na sétima estrofe: certas palavras e imagens — as da televisão, da propaganda, dos jornais, sempre claras e visíveis — aparecem à venda. Parodicamente, como João Cabral em “Retrato do poeta”, Palmer lança as imagens das “palavras” neste circuito de comércio, alertando, entretanto, que a imagem do poema só pode ser “achada” no reverso da página. Reverso. O baixo, que se oculta. O muro, pequeno, em comparação aos altos edifícios que o cercam, em qualquer paisagem urbana. Reverso: as partes traseiras do corpo. Reverso: o grafite (“Fabius Naso / fala pelo rabo…) lido, apesar de encoberto por outros grafites. O “obscuro” se esclarece, para, todavia, esmaecer-se no universo mercantilista inclusive dos mass media, que o poeta nomeia — duplo sentido — como “venda” — turvação, cegueira. “Retrato do poeta” propõe o escrever de dentro, a partir das diarréias propícias, relativizando a figura idealizada do poeta, entre outras coisas. “Revelações”, em sua sutileza, mostra como o “baixo corpóreo” é desprezado e suspostamente “subtraído” de um mundo que, dia-a-dia, se abstrai e se “virtualiza”, em sua ênfase no “aparelho das mercadorias claras”, não só perdendo como aniquilando o sentido de corpo, presente e livre, da existência.
DISCLOSURES
1
Beneath the writing on the wall
is the writing it was designed
to obscure. The two together
form a third kind
2
There is no writing
on the wall’s other side
Perhaps this lack
constitutes a fourth kind
3
Some of the writing on the wall
will be designated as truth
some as art
4
It is said to represent a mirror
of everyday life in its time
5
“Fabius Naso
talks through his asshole
and shits out his mouth”
for example
6
“Foute les Arabes”
for example
7
Certain words and images
or parts of images
have been chipped away
These often turn up for sale
at sidewalk stalls
before the walls
of other cities
8
I too have an image for sale
It’s the image of a poem
and is to be found
on the reverse of this sheet
REVELAÇÕES
1
Sob o escrever no muro
está o escrever designado
obscuro. Os dois juntos
formam um terceiro tipo
2
Não há nada escrito
no outro lado do muro
Talvez esta falta
constitua um quarto tipo
3
Alguns dos escritos no muro
podem ser designados como verdade
alguns como arte
4
O que é dito para representar um espelho
do dia-a-dia da vida em seu tempo
5
“Fabius Naso
fala pelo rabo
e caga pela boca”
por exemplo
6
“Foutes les Arabes”
por exemplo
7
Certas palavras e imagens
ou parte de imagens
se lascaram
Freqüentemente aparecem à venda
na calçada, tendas,
ante os muros
de outras cidades
8
Eu também tenho uma imagem à venda
É a imagem de um poema
e pode ser achada
no reverso desta página
Notas
1. Todos os poemas de Michael Palmer estão no volume At Passages, New Directions, 1995
2. Mikhail Bakhtin, Questões de Literatura (A teoria do Romance), Unesp, 1993
3. Michael Palmer, North Point Press, 1988, San Francisco
4. Wallace Stevens, Complete Poetry
5. Robert Creeley, The Collected Essays of Robert Creeley, University of Califonia Press, 1989
6. Poema extraido do livro “Museu de Tudo”, Livraria José Olympio Editora, 1975
7. Mikhail Bakhtin, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, Edunb/Hucitec, 1993
Régis Bonvicino