Os cem anos do futurismo italiano de Felippo Tommaso Marinetti (1876-1944), a depressão econômica em curso e a quebra iminente da General Motors – que já foi a maior empresa do mundo –, e também da Ford, trouxeram-me à tona um poema de Carlos Drummond de Andrade, estampado em seu livro de estreia, Alguma poesia, de 1930. A peça intitula-se “Cota zero” e é composta de três linhas e oito palavras, incluindo-se entre elas dois artigos definidos e uma conjunção disjuntiva (ou). Ei-la:
COTA ZERO
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
Antes de analisá-la, sem maiores pretensões, quero registrar outro poema desse mesmo livro que a complementa:
SINAL DE APITO
Um silvo breve. Atenção, siga.
Dois silvos breves: Pare.
Um silvo breve à noite: Acende a lanterna.
Um silvo longo: Diminua a marcha.
Um silvo longo e breve: Motorista a postos.
(A este sinal todos os motoristas tomam lugar nos
seus veículos para movimentá-los imediatamente.)
Em seu “Manifesto Futurista”, de 1909, Marinetti, para negar a estética passadista, afirmava que o mundo “enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo… um automóvel rugindo, que parece correr sobre a metralha, é mais bonito do que a Vitória de Samotrácia (tradução de Aurora F. Bernardini). A Vitória de Samotrácia é uma escultura que representa a deusa Atena Niké, cujos fragmentos foram descobertos em 1863 nas ruínas do santuário dos deuses de Samotrácia – ilha do Mar Egeu. Hoje, o que se salvou dela está no Museu do Louvre, em Paris. Ela fazia parte de uma fonte sob a forma de proa de embarcação. Portanto, a descoberta ainda ecoava na Europa quando o poeta italiano a desprezou em seu “Manifesto”.
O capitalismo industrial já havia superado, como paradigma, o comércio monetário desde o século XVIII, a partir da Inglaterra. Foi ele o responsável pela independência norte-americana e pela Revolução Francesa, que, sob a égide dos princípios iluministas, fez também a transição da Idade Moderna para a Contemporânea. A Revolução Industrial substituiu a ferramenta pela máquina, o artesanato, inclusive artístico, pela produção em série, manufatureira. A produção deixou o âmbito da família, que perdeu o controle sobre a oficina e a ferramenta, e passou para as mãos de capitalistas, com a respectiva especialização e divisão do trabalho. Marinetti lança-se no segundo momento da Revolução Industrial, o da energia elétrica, precedido pelo da energia a vapor e sucedido por um terceiro, o da energia nuclear e da robótica. Curiosamente o futurista vale-se da onomatopeia típica de um leão – rugir – para tentar definir o som do automóvel em seu manifesto, o que evidencia a novidade, digamos, indefinível naquele momento. É desnecessário dizer que o século XX foi o século do louvor exacerbado ao automóvel, na vida e na arte, com exceções.
O parnasiano Olavo Bilac amava o automóvel, mas foi Mário de Andrade o primeiro a trabalhar com ele, em termos estéticos, de modo consistente. Em seu “Prefácio interessantíssimo”, à Pauliceia desvairada, de 1921, Mário afirma: “Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contato com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do mundo. Era vaidoso. Quis sair da obscuridade […]”. A menção é importante porque Mário – um poeta, digamos, maior menor – iria dialogar com o primeiro Drummond – um poeta maior, com todas as letras, e mais novo, sujeito a influências. Foi Mário quem escreveu uma das mais finas estrofes sobre o automóvel na lírica brasileira:
— Abade Liszt da minha filha monja,
na Cadilac mansa e glauca da ilusão,
passa o Oswald de Andrade
mariscando gênios entre a multidão!…
(“A caçada”, in: Pauliceia desvairada).
Anoto, de passagem, que Marinetti fazia também apologia da guerra, que considerava a única higiene do mundo, e apologia do militarismo, traço que o aproximou de Benito Mussolini e que hoje o aproximaria de George Bush.
“Cota zero”, embora registre a novidade, já a demarca como negativa, e profeticamente afirma, longe do tom triunfalista do líder do futurismo: o automóvel fez a vida parar. Este poema é uma obra-prima. Por exemplo, a freada do veículo materializa-se no corpo das palavras: “A vida parou/ ou foi o automóvel”. Em “Stop”, leio o anagrama “poste”. Ergue-se um cenário urbano, com a placa (estampando o vocábulo “Stop”) e o próprio automóvel. Drummond traz à tona também a simbiose carro/homem (vida). O anglicismo “stop” tem a função de afirmar e negar, ao mesmo tempo, a modernidade, que chega em quatro rodas; é um dado de desconfiança se cotejado com o título, que, por seu turno, integra o poema: cota zero. “Zero” refere-se obviamente ao veículo parado, inerte, mas “cota” significa limitação, perda, aí já em um horizonte de vida, crítico. Vejamos dois de seus sentidos correntes: parcela determinada de um todo e fração. No poema, fração é a fração de segundos na qual o carro para, mas também a intuição de fragmentação, que ele traria às sociedades contemporâneas, alterando radicalmente – para pior – o perfil das cidades e do campo. As cidades passaram a ser planejadas para os automóveis e o campo foi cortado por estradas no mundo todo. Na palavra “automóvel” leio “moto”, que significa impulso, movimento e, igualmente, o anagrama imperfeito “motor”. Os fatos ocorrem na linguagem e fora dela, como indica o sufixo “móvel”. Drummond, que esteve próximo do movimento antropofágico de Oswald, foi leitor atento do verso de Mário, e observador de sua consideração apenas relativa pelas ideias de progresso de Marinetti. Releia-se o verso: “na Cadilac mansa e glauca da ilusão”. “Glauco” quer dizer verde-pálido, mas etimologicamente, brilho, cintilância, resplandecência – qualidades associadas ao automóvel por insistência da propaganda. A magia e o encantamento, para ocultar os problemas que causaria à humanidade.
Drummond é muito superior como poeta a Mário, que foi seu conselheiro artístico na década de 1920, quando compôs “Cota zero” – poema que se lê como contundente e novo ainda hoje, quando a General Motors está à beira da quebra, e se começa a exigir “carros verdes”, que não poluam e não acelerem a mudança climática e o efeito estufa, causado pelo automóvel (gás carbônico). Charles Erwin Wilson, presidente da General Motors, quando Dwight Eisenhower (governou de 1953 a 1961) o convenceu a ser secretário de Defesa dos Estados Unidos, em 1953, expressou, durante sessão no Senado, no que consistia o ponto de vista convencional. De acordo com Robert B. Reich: “Quando lhe perguntaram se seria capaz de tomar decisões favoráveis aos interesses dos Estados Unidos, mas contrárias à General Motors, sua resposta foi positiva. Em seguida, garantiu aos senadores que jamais haveria conflito de interesses: ‘Não consigo imaginar tais situações, pois, durante anos, sempre achei que o que era bom para os Estados Unidos também era bom para a GM e vice-versa. Não existe diferença. Nossa empresa é grande demais. Ela progride com o bem-estar do país’” . Wilson confirma, com sinal trocado, mais de duas décadas depois, a simbiose entre máquina e homem, captada pelo poema de Drummond, além de revelar a envergadura da indústria automobilística na época, uma verdadeira civilização da barbárie.
“Cota zero” provoca perplexidade no leitor, pela secura, advinda de sua brevidade, constituindo-se quase numa advinha popular, em termos de estrutura, apesar de elaboração formal e filosófica muito além do folclore. Por isso, aproxima-se mais de “In a station of the metro” (1914), de Ezra Pound, um haicai, e se confronta com o ideário futurista. Nesse poema, Drummond percebe que a sociedade brasileira não possuía experiência para lidar com um dos fenômenos de escala do capitalismo industrial, que chegava aqui por força de interesses internacionais. A interpretação mais evidente de “Cota zero” é o poema “Sinal de apito”, explícito, uma tradução do conceito de linha de montagem de Henry Ford (1863-1947), padronizar e simplificar a produção, visando otimizá-la – mecanizando o operário. Drummond era fã de Charles Chaplin e provavelmente assistiu a filmes como A day’s pleasure, de 1919, no qual a personagem Vagabundo decide passear de automóvel com sua mulher e seus dois filhos. Vagabundo tenta dar partida em seu carro, um modelo simples, sem sucesso por um longo período do dia. Em Kid auto races at venice, de 1914, Carlitos atua como ator, no papel de um assistente de uma corrida de carros. O Ford modelo T circulava, nessa altura, no Brasil, com o nome de Ford Bigode. Oswald de Andrade, no poema “Procissão”, capta o choque entre a manufatura e os costumes de São Paulo, então uma cidade em início de crescimento:
Os chofers ficam zangados
Porque precisam estacar diante da pequena procissão
Mas tiram os bonés e rezam
Procissão tão pequenina tão bonitinha
Perdida num bolso da cidade
Bandeirolas
[…]
“Cota zero” avança várias casas em relação ao poema oswaldiano. O que em Oswald é descrição contrastada de alas da urbe, em Drummond é reflexão, paradoxo, física verbal e metafísica. Quem melhor iria também apreender a simbiose homem/máquina – como Drummond – é Álvaro de Campos na peça “Ao volante” (sem data conhecida), da qual cito trechos: “Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram” – uma prosopopeia, aliás, a técnica hegemônica da propaganda para vendê-lo. “À direita o campo aberto, com a lua ao longe./ O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,/ É agora uma coisa onde estou fechado/ Que só posso conduzir se nele estiver fechado,” – aqui existe a percepção do carro como objeto negativo, como “coisa”, mas, de modo bastante expressivo, tal como em Drummond; “Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,/ Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço” – com seu estilo digressivo característico, Pessoa antecipa uma série de questões atuais. O “Chevrolet emprestado” remete – pode-se interpretar livremente – aos veículos financiados, ao crédito, que escraviza o cidadão. Num plano mais efetivo, Pessoa aponta os impasses de hoje. O automóvel projetou seu modelo de produção nas próprias relações humanas, atomizando-as, tanto quanto outros objetos. Pessoa denuncia, por assim dizer, as limitações que a máquina impõe à liberdade do homem, que, com o automóvel – uma das principais pontas de lança do capitalismo –, sumiu (submeteu-se) na distância que alcançou, reafirmando outra distância, a de classes, entre capitalistas e seus “consumidores”. Todavia, importa destacar o verso “Perco-me na estrada futura […]” ante as mudanças de clima, fauna, flora: é profético, sibilino. Marinetti não quis abolir o capitalismo e sim produzir um aggiornamento nas artes – não à toa ligou-se a Mussolini. Observa Peter Bürger, em Teoria da vanguarda, que “Uma arte não mais segregada da práxis vital, mas que é inteiramente absorvida por esta, perde – juntamente com a distância – a capacidade de criticá-la” . Marinetti reafirmou a mais-valia da Revolução Industrial, enquanto Drummond (e Pessoa), num gesto de vanguarda da vanguarda, previu a catástrofe dos dias atuais. Ao pessimismo de Bürger, no que se refere às vanguardas históricas, vinculando-as, de um modo indiscriminado, à falsa superação entre vida e arte da indústria cultural, prefiro Roland Barthes, que, involuntariamente, ilumina “Cota zero”: “Reduzir a literatura a código (falando grosso modo), não elimina o problema histórico, mas, obviamente, obriga a pensar a história de maneira nova” .
Repensá-la é resgatar o mito de Atena, sentenciado à morte por Marinetti, que tentava – com o pífio e destrutivo automóvel – libertar a Itália de sua tradição greco-romana. Atena é a deusa da fertilidade do solo, enquanto grande mãe, como a define Junito de Souza Brandão, que prossegue: “Atena é antes do mais a deusa da inteligência, da razão, do equilíbrio apolíneo, do espírito criativo e, como tal, preside as artes, a literatura, a música e toda e qualquer atividade do espírito” . Souza Brandão aponta dois de seus atributos definidores: a serpente e a ave (a coruja). Um báculo representa a deusa Niké, a deusa do triunfo sobre as adversidades. Atena é cintilância, mas, oposta à cintilância ilusória (Mário) do automóvel de Marinetti. A teoria do futurismo é obsoleta e histórica, já “Cota zero” é peça que representa o espírito crítico, a vanguarda, para além da própria “vanguarda”, e fala para o presente.
* * *
AO VOLANTE
Álvaro de Campos
Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida…
Maieável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!
À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.
À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?
Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbido, violento, inconcebível,
Acelero…
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida.
Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao votante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim…