Paulo José Miranda – 13 Dez 2016
Leitura de Página Órfã, de Régis Bonvicino
O livro de poesia acerca do qual vou aqui escrever é um luxo. Não é um Ferrari, é o silêncio que o Ferrari produz à sua volta, assim como a aridez dos solos ao redor dos eucaliptos. Por conseguinte, o luxo de aqui se trata é o lixo. O lixo é o silêncio do luxo, a aridez provocada pelo luxo. O sexto poema do livro, à página 21, chama-se precisamente “O lixo”. Ao lixo havemos de voltar, mas por ora comecemos pelo uso da língua, pelo modo como o instrumento é tocado. Aquilo que faz com que alguém seja maior do que é é a sintaxe. Há momentos, neste livro, em que a sintaxe nos faz ver a língua, nos faz ver o pensar, o ato de pensar, momentos em que a sintaxe nos faz ver que não estávamos a ver antes. A sintaxe é a língua pensando-se a si mesma e mostrando-se, nesse ato, à nossa consciência.
“Cai a tarde / e não há quem o retarde / o cair da tarde / Cai a tarde” O artigo defino masculino do segundo verso é tudo (obviamente exagero, mas é tudo). Quero dizer que aquele “o” nos faz ver o verbo, nos faz ver o verdadeiro sentido de uma frase, aquele “o” nos revela a língua. “Cai” não é cai, cai é cair, e cair, aqui, não é qualquer cair, é “o” cair. Que este poema “Resgate” é excelente, não está em causa. Mas a excelência da poesia não é apenas o sentido do que diz, mas o manuseio da língua a fazer-nos ver a língua, a fazer-nos ver o que é a língua. Não basta dizer o que não pode ser dito para ser poesia, é preciso dizer o que não pode ser dito de um modo absolutamente sintáctico. Dizer de um modo onde a língua se pense a si mesma e nos faça pensar nesse seu gesto interior.
Por exemplo, sem o terceiro verso pensaríamos tudo completamente diferente. Para além da musicalidade, do parentesco entre tarde e retarde, isto é, para além do belo há a verdade, há o pensar, há o cair na própria língua, na sintaxe e no sentido dela. Por outro lado, “o cair” da tarde já não é mais verbo. “O cair da tarde” é complemento directo de um sujeito: “vejo o cair da tarde”; “sinto o cair da tarde”. Ou, no seu sentido mais dilatado: “impossível impedir o cair da tarde”. Mas este sentido dilatado recupera o primeiro verso “cai a tarde”. Cai a vida. Impossível retardar este cair. Este pensar, este cair em todo este sentido não é outra coisa senão a exposição da sintaxe e do seu mistério. Estamos, no fundo, diante de um livro que, desde o seu primeiro poema e a um mesmo tempo, não recusa a narrativa nem deixa de privilegiar o verso. Nada para um homem sujo / só a água numa cuba / sequer um olhar // (…) [p. 13] A narratividade expressa na primeira estrofe não anula a pertinência do primeiro verso isolado: Nada para um homem sujo (…).
E é deste homem sujo do primeiro verso que todo o livro irá tratar, isto é, de nós aqui dependurados numa cidade de costas viradas para a sua língua, para a sua história, para a sua humanidade. Que cidade é esta? São Paulo? Não. São Paulo é apenas a metonímia deste nosso tempo. A cidade é este nosso tempo exíguo, de onde dependurados vivemos com medo de cair. A primeira estrofe deste poema inaugural mostra, acusa, predica o isolamento a que alguém – um homem sujo – está votado.
Mas essa solidão ao invés de ser amenizada por um outro, pela presença de outro, é, pelo contrario, intensificada, amplificada. 1 + 1 dá quatro. Quatro solidões, ou mais, emergem quando um e outro se juntam. A cidade é uma máquina de multiplicar solidão. Na segunda estrofe do poema, o poeta escreve: mãos sujas / aroma de / amantes talvez. // (…) [idem] A possibilidade de trazer agarrado à sua pele o cheiro de amantes está directamente ligado com suas mãos sujas.
O corpo de uma mulher é um coisa, e esta relação entre um homem e uma coisa – com os dez dedos e ter / ao cabo – o corpo dessa mulher [idem] –, mais do que tudo, suja o mundo. O que mais suja o mundo é esta relação entre os humanos, isto é, entre um humano e uma coisa, pois ninguém vê o humano como humano, todo o humano é para um outro uma coisa. Esta coisa nas mãos ou na boca de um humano suja o mundo. Começa assim este livro de Régis Bonvicino. Mas não se fica por aqui. Assim, no dealbar das páginas do livro, poderia parecer que cada um em si mesmo é o luxo ou a procura do luxo e outro para cada um de si mesmo é sempre um lixo. Embora esta equação exerça sobre nós uma forte atracção, contudo, não é certa. Nem todas as coisas são lixo e nem todo o si mesmo é luxo, como veremos ao longo do livro.
Lixo e luxo, veremos em seguida, determinam-se pela utilidade ou não utilidade da relação de um humano com uma coisa. Não se entenda aqui utilidade de modo ordinário, como por exemplo um garfo diante de uma massa ou uma colher diante de um prato de sopa. Utilidade, aqui, é aquilo que nos serve e nos faz esquecer de nós e dos outros. A utilidade é, por exemplo, e no seu esplendor, a publicidade. Vejamos o poema, que se chama “Anúncio” [pp. 25-6], onde o poeta nos mostra como hoje o humano troca todos os dias a realidade pela publicidade, o existente pelo inexistente, como se de um ganho se tratasse. Mais: como se fosse o sentido da vida. O poema tem, uma vez mais, narrativa. Nessa narrativa há um acontecimento que obriga as pessoas a conduzirem seus carros mais devagar, a atravessar um viaduto muito lentamente, como tantas vezes na cidade. O poeta vai junto com os demais, mas não está com os demais. O poeta enuncia a realidade que vê: urina e fezes na calçada, latas velhas de anchova em conserva; em suma, mendigos cultivando detritos. O poeta faz-nos ver assim os novos pobres camponeses da grande metrópole e suas actividades “agrícolas”. Cultivar detritos é a grande agricultura dos miseráveis das grandes cidades.
Por outro lado, o resto das pessoas, a maioria, olha o outdoor com o rosto de uma modelo anunciando não se sabe o quê – pois nunca se sabe o quê. Ninguém vê um homem entre o arame farpado, ninguém vê esse preso no campo de concentração da vida, no campo de concentração dos dias sem nada, mas todos vêem o rosto da modelo que pode muito bem nem existir, que não existe, mesmo. Todos os dias trocamos a realidade pela ficção, trocamos o existente pelo inexistente, trocamos a poesia pela publicidade. Julgo que o titulo do livro, o sentido do titulo do livro explode páginas antes com o poema “Azulejo” [p. 18]: Meu pai e minha mãe / mortos / ninguém / algum // (…). Evidentemente não podemos esquecer o poema da página 84, “Página”. Leia-se a estrofe final: a flor da azálea / o lixo real, / e o verdadeiro / desta página
Poderíamos pensar, biograficamente, isto é, sem interesse nenhum para a poesia, que foi necessário a morte dos pais para o poeta ver a verdade e no-la mostrar. Mas toda a verdade advém sempre de uma morte ou de várias mortes no coração de alguém. Retornemos ao “Azulejo”, ao seu final: cacos ásperos / que, agora, / num ato de acúmulo / rejunto. Aquele que sobrevive à morte de um amor, fica entregue ao a-cúmulo de rejuntar os cacos ásperos da realidade, os cacos que a publicidade de todos os dias teima em fazer esquecer. O poema que dá titulo ao livro, “Página órfã”, os dois últimos versos terminam assim o livro: (…) beco sem saída, página órfã, / nunca, imitação da vida [p. 110] Imitação da vida tanto é o lixo quanto é o luxo.
Para além da sujidade do mundo, também muitos são os versos que nos mostram o seu luxo, não só através da enumeração de várias grifes, mas de hábitos ligados a um mundo de grife. O poema “It’s not looking great!”, referência explícita à top model Kate Moss, mostra que o luxo facilmente se deteriora em lixo, no mundo grife. O que não é mais útil, grifemente útil, torna-se lixo. Mais: deve tornar-se lixo e ser apontado como exemplo. Assim, as referencias contínuas, quase nauseantes de tanto a-cúmulo, a grifes e às modelos que servem de médiuns a esses mortos, tem uma razão de ser: mostrar o outro lado da realidade, mostrar o que não é a poesia, mas a publicidade, o inexistente. O luxo facilmente se vê, no poema, como lixo. À flor da página, a borboleta voa sobre o lixo e o luxo transmutando um no outro, em verdade. É assim que o poeta quer ver a sua palavra e que ela seja vista, testemunhada.
O poeta não é concreto, é duro, violento. O poeta não é lírico, é sintacticamente belo. Não há meio termo neste livro, não há classe média, não há nada médio. Sentimos a vertigem de passar dos muito ricos para os muito pobres, dos miseráveis para os hiper-supérfluos. Atravessamos ainda a rua, o verso, da ignorância medíocre para a cultura erudita. E o poema que melhor diz a poesia em geral e, em particular, a deste livro, chama-se “Prosa”, que começa assim: “Um poema não se vende como música, não se vende como quadro, como canção, ninguém dá um centavo, uma fava, um poema não vive além de suas palavras (…)” [p. 98] Nem mais. Quem investe em poesia? Quem usa a poesia do seu tempo como modo de impressionar, numa reunião social? Quem trauteia um poema enquanto faz a barba? Quem imaginaria um monstro tamanho chamado top ten poético?
E um poeta, como Régis Bonvicino neste seu livro, não canta a sua dor, não resmunga a sua verdade, nem inventa superficialidades ísmicas. Pois ele sabe que a poesia não vale nada, senão uma palavra esperando outra. Por fim, resta-me assinalar a acertada inscrição no pórtico do livro, verso de Frederico García Lorca: “y los que limpian con la lengua”. O lixo e o luxo.
BONVICINO. Régis. Página órfã, Martins, Martins Fontes, São Paulo, 2007