NOTA SOBRE REMORSO DO COSMOS
O poeta Régis Bonvicino, conhecido também por seu trabalho como editor da revista literária Sibila, lançou no segundo semestre de 2003 pela Ateliê editorial seu nono livro de poesia, Remorso do Cosmos.
Não nos surpreende a seriedade do trabalho deste poeta, em ação desde a década de 70, que nos oferece sua consciência política e intenso apuro na linguagem desdobrando uma escrita carregada de dicção urbana. Em alguns poemas sem títulos, poemas-fragmentos, bem no ritmo do que hoje assistimos no veloz de nossos dias nas metrópoles, lemos “vejo estrelas com motores no céu, da janela/ de minha sala”, em “Sem título (3)”. Na cadência do ritmo contemporâneo soprado nos poemas de Bonvicino as “borboletas voltam para mim como primers atiradores”, ainda em “Sem título (3)”, escrito em duas línguas. São versos que evocam momentos impossíveis de poesia. Se as borboletas de seu livro insistem com um lirismo descarregado de sentido, a ironia nos convoca a pensar nosso tempo e nossa língua, na multiplicidade do descoberto a partir do horror de 11 de setembro, renovado em outros horrores.
Cabe, no entanto, ressaltar que os poemas de Bonvicino primam também na delicadeza do gesto poético, que transpira a relação de amizade com outros poetas de seu tempo. A Carta a Michel Palmer do poema “Canção”(2), faz passar “um alfabeto subterrâneo onde/ o miosótis floresce ao contrário/ através de folhas névoa”. Lemos ainda no poema “A nuvem” dedicado a Vera Barros, e escrito a partir de um trabalho fotográfico: “quando chove/ é um espaço acústico/ Espaço que se funde/ (um abutre atravessa uma nuvem)”. Sua poesia abre e fecha imagens, e carrega no céu, um tanto escuro, a tensão que acentua o jogo poético com a linguagem.
O que afetou principalmente a ética humana, no desdobramento do evento de 11 de setembro, está traduzido no trabalho com as palavras do poeta neste livro, em um certo remorso pelo que podia ter sido o mundo e não foi. Emociona o leitor e consegue dizer de um “quase” impossível de se dizer – poeticamente! São as diversas línguas e as expressões que circulam em uníssono como no poema “Canção (3) (Bossa Nova)”, escrito em Coimbra: “quarta-feira, penúltimo dia de maio!/ conversando no Café Santa Clara com valter hugo mãe/ nobody falls but mine”. Ou nos versos de “En las orillas Del Sar” onde lemos: “Santiago de Compostela/ pátios de vida secreta/ …qui tollit mundi…/”, que nos confirmam sobre um tempo não mais de razões habitadas em muros e fronteiras, agora perdido.
O livro de capa dura e com desenho de Susan Bee distribui inúmeras papoulas, prímulas, jacintos, magnólias, rosas, tulipas, lírios … que “estouram” ao longo das páginas nos fazendo pensar o mundo-em-sonho, fora do caos total. A dobra do título sustenta ainda restos de sons abertos procurando alento. Lemos nos vocábulos de “Etc. (7)”: “Dialogava um lamento com o vento,/ pedia a ele mais um tempo/ & um espaço,/ que me recusava o movimento”.
Rio de Janeiro, 28 de maio de 2004.
Solange Rebuzzi, poeta e psicanalista.
Autora do ensaio “Leminski, guerreiro da linguagem” (7Letras).