A poesia de Murilo Mendes representa um desafio para a crítica porque, entre tantas razões, percorreu o caminho oposto ao de outros grandes poetas brasileiros: foi melhorando ao longo do tempo, especificamente, a partir de Poesia Liberdade, de 1947, quando seus contemporâneos, como Carlos Drummond de Andrade, já haviam praticamente escrito seus livros mais significativos. Esta é, implicitamente, também, a opinião de João Cabral de Melo Neto, expressa em Carta (a MM), estampada no volume Murilo Mendes, de Laís Corrêa de Araújo, ao comentar Tempo Espanhol, de 1959: “… É um grande livro. E não digo que seja o melhor de sua maturidade porque estou me lembrando de Parábola que você me deu a ler no Rio. Mas em todo caso acho-o muito superior a Poesia Liberdade e Contemplação de Ouro Preto…”. João Cabral refere-se a Parábola como um “shift” no percurso do poeta de Juiz de Fora.
Mendes foi, para mim, um poeta “desencontrado” (nunca menor) desde sua estréia em 1930 até quase os anos 50. Não lhe caia bem a dicção e os temas “brasileiros” do modernismo de 1922 – que escolhera, acertadamente, como seu principal interlocutor. Sua disposição linguística, de apreensão da palavra enquanto coisa, e sua atração pelas imagens, estavam deslocadas, neste período, como ele mesmo reconhece em “Vocação de poeta”, de Tempo e Eternidade, de 1935: “Não nasci no começo deste século / Nasci no plano do eterno…”. Sim, seu “catolicismo” pode, neste sentido, ser interpretado como tradução de uma sensibilidade mais universalizante. Pouco importa, todavia, que tenha sido católico ou que tenha deixado de ser marxista. Oswald de Andrade não é relevante porque foi militante comunista num dado momento de sua vida e, tampouco, Drummond não deixa de ser central porque trabalhou, nos anos 30, para pessoas ligadas à ditatura de Getúlio Vargas.
A preocupação excessiva de Laís Corrêa de Araújo em justificar o “catalocismo” de Mendes, conceituando-o como humanístico e “libertário”, talvez ampare-se no momento em que lançou o volume que ora se reedita: em plena vigência da ditadura militar (1972), com Murilo já vivendo em Roma, cada vez mais isolado. O tom amoroso, parcial e francamente favorável explica-se pelo esquecimento em que a obra dele caira, desmerecidamente . Todavia, há observações valiosas, neste, na verdade, longo ensaio, que se pode designar como “histórico” , que esclarecem a produção toda de Murilo e ainda são pertinentes: “não sabemos se já foi assinalado o parentesco espiritual de Murilo com o inglês William Blake…”.
Mendes tratava, para mim, o verbo quase como um escultor lida com a pedra, rompendo com os seus sentidos gramaticais e até poéticos mais óbvios e, por isso, apenas com o aparecimento dos movimentos de vanguarda da segunda metade do século XX, sua obra e sobretudo o que escreveu a partir dos anos 40 começa a ganhar legibilidade entre nós. Creio que Corrêa do Araújo aponta para este aspecto quando afirma: “… o tratamento formal da linguagem em Murilo evolui de uma composição palavra-puxa-palavra (modelo barroco) ou palavra-contra-palavra (modelo surrealista) para um esquema palavra-cria-palavra…” . É, justamente, este “modelo” – palavra-cria-palavra – que nos oferece o poeta mais ele mesmo, desgarrado de Drummond (a quem diluia como em “Diante do crucifixo / Eu paro pálido tremendo…”) e livre do modernismo brasileiro, como em Tempo Espanhol. Leia-se: “O sol de Granada aspira / Arquiteturas abstratas / O sol de Granada gira / O corpo de Lindajara / O sol de Granada inspira / Sangue e ritmo de gitanos/. O sol de Granada mira / As duas faces de Espanha”.
Talvez, seja este também o poeta a respeito do qual José Guilherme Merquior escreveu: “sua romanitá é um símbolo vivo das perspectivas de mundialização de nossa literatura”. Mendes encontrou-se, no fundo, quando passou a morar na Europa (1953) e a se sentir um poeta mais vinculado às tradições ibero-românicas. Deste ponto de vista, pôde iluminar – não mais como “lâmpada” – toda a poesia brasileira contemporânea. Em Roma, tornou-se o brasileiro que, aqui, não conseguia ser, em sua trajetória de “estrangeiro” permanente.
Fez bem Haroldo de Campos – um dos maiores autores brasileiros dos últimos 50 anos e, em muitos vieses, “discípulo” de Mendes, em acolher este estudo em sua coleção Signos. Quis, certamente, mostrar ao público mais jovem que não se faz crítica sem diálogo ou risco, como nos deixa patente este pioneiríssimo “Murilo Mendes”, de Laís Corrêa do Araújo, que, para o choque dos medíocres, retira a recepção de poesia do mero jogo de marketing e notícia.
LIÇÕES DE POESIA E VIDA POR MURILO MENDES
Reedição de ‘Tempo Espanhol’ impõe uma reflexão sobre a literatura e a atualidade. — Régis Bonvicino
O que significa a primeira reedição isolada, em 2001, momento paupérrimo da poesia brasileira, de Tempo Espanhol, publicado em 1959, de Murilo Mendes? Murilo é um dos maiores poetas brasileiros do século 20; todavia, morreu, amargo e quase ignorado, em 1975. Só agora começa a ser um pouco mais lido. Tempo Espanhol foi escrito entre 1955 e 1958, quando o poeta já morava na Europa. Há um estudo, de Haroldo de Campos, intitulado Murilo e o Mundo Substantivo, publicado em 19 de agosto de 1963, no Estado, e depois recolhido em Metalinguagem (1967), que se tornou peça fundamental, pela capacidade de esclarecimento, a respeito desse trabalho. Para Haroldo, Tempo Espanhol é um livro domado e severo, de maturada maturidade. Poesia magra e dura, sem nenhuma concessão ao sentimentalismo superficial dos melancólicos escudeiros da poesia-liricizante da poesia-coração.
Seu substrato é Espanha, a Espanha “problemática e antagônica, sofrida e altiva…” Campos afirma, com razão, que “o rigor age aqui como força centrípeta, convocando os elementos em violenta dispersão e disciplinando-os num ‘seco estilo de contrastes’…” Por que “contrastes”? Porque Murilo escreveu, neste caso e também em outros, sob o impacto das conseqüências das Segunda Grande Guerra – sob o impacto da guerra fria, período no qual o mundo ainda cogitava da questão da solidariedade, ao contrário de hoje, em que prevalece, depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, o conceito de unipolaridade. O livro se abre com Numancia, poema que concentra os temas políticos e estéticos que serão desenvolvidos ao longo da obra:
“Prefigurando Guernica / E a resistência espanhola, / Uma coluna mantida / No espaço nulo de outrora. / Fica na paisagem térrea / A dura memória da fome, / Lição que Espanha recebe / No seu sangue, e que a consome.” Murilo está falando ao mesmo tempo da localidade que, mesmo antes de bombardeio alemão ou inimigo, já parecia uma ruína – “uma coluna mantida / no espaço nulo” e tratando da capacidade de confronto, na linguagem e na história, dos espanhóis (à época, sob o franquismo), que souberam manter a coluna, na dupla condição, irresignada igualmente, de “dura memória da fome”. Essa “dura memória da fome”, obviamente cultural também, tensiona todo o livro e o diferencia como divisor de águas na poesia brasileira: “Quem dá de comer e beber / Ao espanhol insubmisso / Com sua linguagem seca? / Quem dá de beber a Ilhescas?”
Velázquez – O “espanhol ” aqui representa, por subtração, o brasileiro. Murilo falava obviamente também do Brasil. Dizia ele, no poema intitulado Velásquez, que “pintar é elucidar o espaço”. Em Tempo Espanhol, Murilo elucida o sentido do ato de escrever, num mundo dividido e desgastado pela guerra e por uma ditadura visível, no qual, todavia, não se havia perdido a perspectiva de solidariedade e fraternidade.
O dialogismo, que Boris Schnaiderman aponta em sua poesia, opera-se também entre o estético e o político, entre o geográfico e o histórico, propondo um “coro” – que é também “cora” — entre eles e não apenas entre muitas vozes líricas: “A história circula insatisfeita / Ao longo da planície autárquica.
/ (…) / Alturas compactas se procuram. / Parte-se o galope em fragmentos” (Chuva em Castela).
Então, o que significa a reedição deste “anticlássico”, “antiguiaturístico”, que reúne algumas das melhores peças escritas em língua portuguesa em todos os tempos, como o poema O Sol de Granada (“… O sol de Granada mira / As duas faces de Espanha”)? O momento, e nele incluo pelo menos a segunda metade dos anos 90, é paupérrimo, estetizante, de quantidade voluntariosa, que, talvez, a partir de agora se reconstrua como qualidade. Período unipolar, sem contrastes, no qual prevalece poesia de tipo confessional (sem dimensão pública ou mesmo subjetiva), de caráter auto-referente, em relação ao sujeito que a escreve, e à sua própria série histórica: a maior parte dos novos autores copia pura e simplesmente o que já foi feito desde o parnasianismo e o modernismo de 22 … Então, a reedição de Tempo Espanhol pode representar uma tentativa de retomada da reflexão e de reposicionamento acerca do estado atual da poesia brasileira, que, submetida à pressão do movimento de globalização – mirando só uma de suas faces –, regionalizou-se novamente e dele mimetizou apenas os procedimentos capitalistas, em escala de microempresa. Assim, Tempo Espanhol poderia ser tomado, de novo, tal um marco, desta feita de ruptura com a unipolaridade pálida e autofágica da própria poesia brasileira, propondo, para os seus cantos, o eco rouco e polifônico desse flamenco!
Régis Bonvicino