Laríope é o nome de uma das irmãs do personagem Roseno, de Meu Tio Roseno, a cavalo, o mais recente livro de Wilson Bueno. Laríope é variação evidente de Líriope, a ninfa, que, como nos ensina Juanito de Souza Brandão, não escapou da insaciável energia sexual do rio Cesifo. Os dois são pais de Narciso, aquele que se perdeu, quando, exatamente, se encontrou, ao ver-se nas águas da fonte de Téspias.
Líríope, na condição de mãe de Narciso, fornece uma pista para a interpretação deste novo, claro e riquíssimo trabalho de Bueno, autor de obras essenciais como Mar Paraguayo (1992) e Manual de Zoofilia (1997). Liríope/Narciso são, para Meu Tio Roseno, a cavalo, sinônimo de “precariedade” da linguagem, na representação do mundo. Precária, no encontro do mundo — no caso o percurso de Roseno, na década de 40, do Guairá, na confluência com Paraguay, Paraná, Mato Grosso do Sul, até as barrancas do rio Paranapanema, em São Paulo — a linguagem volta-se para si, numa estratégia para — paroxismo — captar referências, que a façam retornar a este mundo, que, em aparência, abandona. É por isso que forja, precisamente, um léxico novo, que inclui, no português coloquial mas sóbrio e fluente da narrativa, vocábulos do guarani e do espanhol da fronteira. O rio (Cesifo), a ninfa (Liríope) e a fonte (Narciso) simbolizam, igualmente, a fertilidade, que é outro traço fundante desta prosa, que, na verdade, é um longo poema também, dialogando, em suas acutilâncias, com a mais viva tradição de inovação da ficção e da poesia brasileira, em contraste com a “soap prose” dos dias de hoje. Meu Tio Roseno, a cavalo não está — como poderia dar a entender pelo título — conectado, diretamente, ao trabalho de Guimarães Rosa, embora ressoe o “Iauaretê”. Dissimulado , como o zaino (cavalo sem malhas brancas, com o qual Roseno cavalga, qual um Quixote), ele traz, em seus subterrâneos, como seu antepassado “tutelar” (mas sem imitações ou releitura primária), para valer-me de expressão de Davi Arrigucci – o Cobra Norato (1931), de Raul Bopp. Bueno inicia com “O dia em que meu tio Roseno montou o zaino Brioso e tocou de volta para Ribeirão do Pinhal, ainda não era o dia em que eu nasci …” que remete, indiscutivelmente, a “Cobra Norato”: “Um dia / eu hei de morar nas terras do Sem-fim / Vou andando caminhando caminhando … “. Roseno quer ter uma filha (ou filho), com a bugre Doroí. Norato quer casar-se com a “filha da Rainha Luzia”. Os dois livros têm uma base comum: o expressionismo e, particularmente, o “fauvismo” (ferismo), dos pintores Henri Matisse e André Derain, no exagero do desenho e das perspectivas da fabulação. Leia-se Bueno: “ … Sabe, entanto, nosso cavaleiro, o que de posse, desejo e ciúme, e toda a Andradazil, perseguem os cascos de seu cavalo, a inteira guerra do Paranavaí, e os enforcados vivos balançando do alto das embaúbas, os olhos roídos de formiga …”. Este “fauvismo” construtivista de Meu Tio Roseno, a cavalo, que relativiza a idéia de “tema”, pode ser percebido na mudança (igualmente sinal da “insuficiência das palavras”) de nome do personagem principal, Rosevéu, Rosevino, Rosevago, Rosenente, ao longo da estória e conforme as situações que vive, e do próprio cavalo — às vezes chamado de zaino, às vezes de saino. É, por outro lado, a la Matisse e Derain, o registro do movimento — o toque dinâmico, que faz a “estória” fluir, “insana”, não convencional.
O “fracasso” da linguagem (“Narciso” que, ao mesmo tempo que se encontra, que adquire consciência, esvai-se) , denunciado por Bueno, para representar o mundo , traz, neste Meu Tio Roseno, a cavalo, uma dimensão política: narrando coisas do passado recente, enfrenta a questão da terra e do território no Brasil de agora : “… Tinha o risco de uma cicatriz no queixo o Sisséno, nosso inimigo. Ali Deus havia esquecido toda a maldade. Cruento, brigador, Sizeneno deixava, sempre em horror e morticínio, o seu rastro, contratado dos fazendeiros, guardião dos latifúndios, Sinzéno, o Parnanguara. Bisca de ruim, malévolo até o tutano, aquilo sabia ser o bicho…”. Mundo e verbo encontram-se, quando o narrador batiza subitamente o personagem de “Sinzéno”, que ecoa a cor cinza e a própria morte, que produz. “Sisséno”, como no início do trecho, aponta para cisão: de um lado, os fazendeiros, de outro, a cisalha (os invasores da terra alheia). As “cinzas” de Sinzéno, nos levam a outro aspecto central deste livro: a discussão de que a morte não há. Roseno, já morto, é o tio do narrador e não a voz da narrativa, que se faz de memória e, portanto, resgate — palavras substituindo a vida, num ato de reparação. Complexo e “inesgotável”, em suas miríades de trilhas e viagens, Meu Tio Roseno, a cavalo confirma Wilson Bueno como um dos maiores prosadores brasileiros da atualidade, ao lado de, entre poucos, por exemplo, Milton Hatoum.
Régis Bonvicino, julho de 2000