O julgamento sumário do tirano Nicolau Ceausescu e de sua mulher Elena é um desses momentos plenos e, por isso mesmo, raros da história do homem no planeta Terra. Nele convergem a violação bárbara da ordem jurídica e dos princípios essenciais do processo enquanto garantia de direitos individuais e conquista civilizatória, a citação recorrente de outros episódios históricos (como Danton, Ceausescu se recusava a falar diante do tribunal de exceção) e uma dimensão estética que, além de lembrar vivamente o romeno Ionesco, o recém-falecido Samuel Beckett, um Harold Pinter, talvez lembre o Shakespeare, de Macbeth .
A transcrição da íntegra do julgamento sumário ( Folha , 28 de dezembro de 1989) mostra, para o leitor atento, que a literatura, mesmo a moderna, aparentemente desinteressada da comunicação imediata, está visceralmente ligada à realidade e sua expressão. O texto integral do julgamento do tirano marxista não parece, definitivamente, uma peça jurídica. Violando afrontosamente o princípio da duplicidade do juiz natural (proibição dos tribunais de exceção e exigência de juiz pré-constituído para o julgamento), da separação cabal de acusação e defesa, o princípio de que o réu, qualquer réu, se defende de fatos especificados, o julgamento vai assim –nessa medida – ganhando um tom de caricatura e paródia, que o afasta da Justiça e de sua racionalidade, para se aproximar da literatura, que denuncia desesperadamente a violência de certas realidades.
As frases telegráficas, o tom lacônico de pré-julgamento, a perversão jurídica, a presença de “personagens” farsaicos como o “médico” (“[…] Médico: Por favor, vou tirar-lhe a pressão arterial. [Escuta-se um telefone tocar.] Como está sua saúde? [Não há resposta. O médico se aproxima de Elena Ceausescu] […].”) fazem desse julgamento uma espécie de Rhinoceros II , de Ionesco. Uma parábola a respeito do absurdo do totalitarismo, escrita em farrapos de linguagem. Veja-se o seguinte trecho: “(…) Ceausescu: Me nego a responder essa pergunta. Promotor: Ela é mais loquaz. Elena: Sim. Promotor: Eis aqui a sábia analfabeta que não sabia falar, que não sabia ler (…).”
A brutalidade da descrição dos momentos finais do julgamento, quando o promotor adverte que a sentença é inapelável, relatando sangue e marcas de bala no muro onde Nicolau e Elena foram fuzilados, lembra o conselho de uma das bruxas a Macbeth: “(…) Sê sanguinário, audaz e resoluto. Ri da força dos homens, pois nascido de mulher, nenhum foi (…)” (tradução de Manuel Bandeira). Os revolucionários da Romênia, que aparentemente libertaram o povo daquele país da múmia marxista, perderam a oportunidade de oferecer um julgamento civilizado, didático e pedagógico para o mundo. Um julgamento de direito, que expressasse uma ruptura real com os métodos do conducator e de sua polícia secreta. Um julgamento que negasse a shakespeariana definição da vida: “(…) uma história contada por um idiota, cheia de ruído e fúria e sem nenhum sentido (…).”
Nikolai e Elena
Notas:
[1] Publicado originalmente na Folha de S. Paulo em 1 ° de janeiro de 1990.