(Breve nota sobre “At Passages”, de Michael Palmer)
Insinuando no título a maldição que impediu por décadas seu reconhecimento, a exposição “Flávio de Carvalho: 100 anos de um revolucionário romântico” repropõe com generosidade de detalhes e informações sua obra ao público. Flávio, um engenheiro civil, formado na Inglaterra, que se fez artista de várias searas – arquitetura, pintura, cenografia para teatro, desenho de moda etc – é, na verdade, tão importante para o Século 20 no Brasil quanto Tarsila do Amaral.
Nada há de romântico em sua revolução — extensa a ponto de prever todas as manifestações centrais que lhe seguiram, na esfera da alta e também da cultura mais crítica de massas.Os “Parangolés” de Hélio Oiticica já estavam presentes no traje do “novo homem dos trópicos”, passeata-performance realizada por ele no centro de São Paulo em 1956. Em “Anteprojeto para Miss Brasil”, óleo sobre tela de 1931, estão igualmente preditas as contradições entre internacional e local, exploradas por Caetano Veloso a partir de 1968.O salão da sede da Fazenda de Capuava, trazendo — em sua transparência — para seu interior, o céu e a paisagem, antecipa a “Chemosphere”, casa “high-tech” utópica do norte-americano John Lautner, de 1960.Stephane Mallarmé? Sim. A notável “Série trágica”, de 1947, onde ele registra, em carvão sobre papel, a agonia de sua mãe, guarda semelhança com as notas-poema que o poeta francês fez no momento da morte de seu filho.
Talvez Flávio seja o melhor pintor de retratos do Brasil neste século.Aparente paradoxo para quem é considerado “vanguardista”, sem fronteiras de qualquer espécie.Há de admirável neles algo que se pode recortar como uma série pintada em óleo sobre tela ao longo tempo: a de poetas. Mário de Andrade, um dos brasileiros retratados, disse: “quando defronto o retrato feito pelo Flávio, sinto-me assustado, pois nele vejo o lado tenebroso de minha pessoa, o lado que eu escondo dos outros”.
Em cores fortes, Carvalho capta (explorando a analogia entre lua e serpente) a amargura e a melancolia de Murilo Mendes, em 1951. E ou registra, desencontrando formas e tons, a força e a vitalidade do cubano Nicolas Guillén, em 1948. Notável, entretanto, é seu “monumento” a Federico Garcia Lorca, destruido em 1968 pelo Comando de Caça aos Comunistas e reerguido na Praça das Guianas aqui em São Paulo, em 1971.Ao lado de uns fios de aço, atenuados em formas orgânicas, uma nave espacial flutua, tênue, no espaço.
Flávio de Carvalho é quem mais encarna, na arte brasileira, renegando, a meu ver, qualquer traço de romantismo, o silogismo de Ludwig Wittgenstein: “o pensamento é a proposição com sentido. A totalidade das proposições é a linguagem”. A obra de Flávio, ainda não “canonizada”, como a de Tarsila, e recebida como “dispersão” e “loucura”, representa uma ambição fundante de sentidos.
Régis Bonvicino, outubro de 1999.