(Jornadas sobre as linguas de península ibérica e a súa creatividade)
1. INTRODUÇÃO
A língua galego-portuguesa surge, como ensina Paul Teyssier1, no século XIII, e se estrema de todos os falares da Península Ibérica por, entre outras razões, “lhe ser totalmente desconhecida a ditongação”. Portugal se separa do reino de Castela e de Leão, em 1128. Esta fronteira, do século XII, isola a Galícia de Portugal, para sempre. Mas não a “língua brasileira” da cultura galega, como se vai ver, por meio da leitura de “Santiago”2, de Murilo Mendes (1901-1975). A língua galego-portuguesa, nascida no Norte, foi levada ao sul, como se sabe, pela Reconquista, contra os mouros. O galego-português foi “fixado” pela poesia lírica peninsular – que encontra no Cancioneiro da Ajuda seu marco inicial. Cantigas de amigo – poemas de amor em que fala a mulher. Cantigas de amor – de inspiração provençal, em que fala o homem. Cantigas de escárnio e de maldizer.
Por volta de 1350, no momento em que se extingue a escola literária galego-portuguesa, observa Teyssier, as conseqüências do deslocamento para o Sul do centro de gravidade do Reino de Portugal vêm à tona. O português, já separado do galego, por uma fronteira política, torna-se a língua oficial de um país cuja capital é Lisboa. É aí, no eixo Lisboa/Coimbra, que o então chamado português “clássico” vai se constituir e se transformar em norma. O português “clássico” começa, segundo quase todos os estudiosos, com Camões, no século XVI. Em 1500, Pedro Álvares Cabral descobre o Brasil. E para a nova terra transporta este português à Camões. Um dado relevante, de formação, para a “língua brasileira”, a embaraçar as coisas, é, todavia, os sessenta anos de dominação espanhola (1580-1640). Este domínio, de Espanha sobre Portugal, teve como uma de suas conseqüências dois séculos de bilinguismo luso-espanhol. Gregório de Matos (1623-1696) – nosso poeta maior da época colonial – que, em muitos poemas, como o que transcrevo, por sua beleza e brasilidade, antecipou “a língua brasileira”, desejada pelo nacionalismo dos Românticos mas só conquistada pelos modernistas da primeira geração (Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Raul Bopp) – escreveu em castelhano também3.
AOS CARAMURUS DA BAHIA
Gregório de Matos
Um calção de pindoba, a meia zorra,
camisa de urucu, mantéu de arara,
em lugar de cotó, arco e taquara,
penacho de guarás, em vez de gorra.
Furado o beiço, sem temer que morra
o pai, que lho envasou cuma titara,
porém a mãe a pedra lhe aplicara
por reprimir-lhe o sangue que não corra.
Alarve sem razão, bruto sem fé,
sem mais eis que a do gosto, quando erra,
de Paiaiá tornou-se em abaité.
Não sei onde acabou, ou em que guerra:
só sei que deste Adão de Massapé
procedem os fidalgos desta terra.
Retomando: o galego começa a se afastar do português desde o século XIV e, a partir do século XVI, deixa de ser cultivado como língua literária em Portugal, sobrevivendo lá exclusivamente na condição de “palavra falada”, sem importância. Todavia, os modernistas brasileiros da segunda geração (especialmente Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto) o resgatam e o transformam em referência cultural, muito mais importante do que a própria cultura e língua portuguesa da Europa, com as quais se rompeu desde 1922. Em poucas palavras, o modernismo de 1922, com origem na cidade de São Paulo, pregando uma língua próxima à fala, cria o “brasileiro” liberado, liberto da norma gramatical portuguesa, incorporando tons ameríndios e africanos. O modernismo sistematiza a recusa a qualquer “norma” de português europeu e inventa o “brasileiro acentuado”, para me valer, uma vez mais, de uma expressão de Paul Teyssier.
É curioso, porém, que um dos mais renomados poemas do romântico Gonçalves Dias (1823-1864), “Leito de Folhas Verdes”, de 1851, interessado na questão da língua brasileira e na recusa ao “purismo mesquinho e estéril”4, se valha, numa operação complexa, da forma de cantiga de amigo, tal como no Cancioneiro da Ajuda, para expressar a espera amorosa de uma índia, que aguarda seu “amigo” Jatir:
LEITO DE FOLHAS VERDES
[…]
Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bagari mais doce aroma;
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!
Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!
Jatir significa, em tupi, arpão de haste longa, o que confere precisão semântica ao nome que Dias escolheu para o seu personagem masculino. Aliás, neste poema, algumas das inovações do português do Brasil são visíveis na identificação de objetos e noções próprias à realidade local, ao clima, à fauna, à flora e no vocabulário, embora o texto seja conservador na fraseologia. Caberia, muito mais afirmativamente, a outro romântico brasileiro, agora de segunda geração, Joaquim de Sousândrade (1833-1902) prever não só a nova “língua brasileira” inventada pelos modernistas de 1922, mas antecipar, de forma cabal, uma espécie de língua brasileira de inflexão transnacional, crítica e profética em relação ao capitalismo, especialmente no Canto VIII, “O Inferno de Wall Street” (1877), de seu poema-livro O Guesa Errante. Leiam-se os fragmentos 16,17, 22 e 23:
O INFERNO DE WALL STREET
Joaquim de Sousândrade
16 (HIEROSOLIMITANAS brancas vendendo ‘beijos a 25 cents,
nas church fairs’:)
– África borrou tôda a América,
Qual guaribas ao caçador;
Muito o Índio queria:
Honraria
E Deus de Las Casas e amor!
17 (TILTON gemendo e reclamando $ 100,000 por damages
a sua honra-MINERVA:)
– Todos têm miséria de todos,
Stock’xchanges, Oranges, Ô! Ô!
Miséria têm todos:
São doidos,
Se amostram; sábios, if do not.
[…]
22 (Hinos de SANKEY chegando pelo telefono a STEINWAY
HALL:)
– O Lord! God! Almighty Policeman!
O mundo é ladrão, beberrão,
Burglar e o vil vândalo
Escândalo
Freelove… e ‘í vem tudo ao sermão!
23 (Yankee protestante em paraense igreja católica:)
– Que stentor! que pancadaria
Por Phallus, Milita! Urubu,
Pará-engenheiro;
Newyorkeiro
Robber-Índio… oremus-tatu!
. . . . .
2. “SANTIAGO” DE MURILO MENDES
Para análise do poema “Santiago”, é preciso ter em mente a noção de tratamento de pessoas na língua portuguesa. Tratamento, de acordo com o já citado Teyssier, é a maneira pela qual o sujeito falante se dirige ao seu interlocutor. Até por volta de 1500, o português conhecia, como o francês, apenas o tuteamento familiar ou o voseamento respeitoso. Mas a partir de 1500, surgem novas formas, que serão muito bem “acolhidas” na América, como “vossa excelência”, seguidas da terceira pessoa do singular. Ou “vossa mercê”, que, por erosão fonética, passou a você (vossa mercê, voacê, você). No Brasil, com exceções, só se usa e se fala você, utilizando-se raramente o tu. Para a morfologia a sintaxe e o vocabulário, de acordo ainda com o autor de História da Língua Portuguesa, o fim do século XVIII e o início do XIX parecem ter sido época de transição entre o português moderno (“clássico”) e o contemporâneo.
A 22 de abril de 1500, Pedro Álvarez Cabral chega às costas do Brasil. A colonização portuguesa só começa, no entanto, efetivamente, em 1532. O português, o índio e o negro foram, durante o período colonial, as três bases da população brasileira. Ao lado do português europeu, existia a língua geral (tupinambá, da família do tupi-guarani). Em 3 de maio de 1757, o Marquês de Pombal proibia o uso da língua geral e impunha o português oficialmente.
O português brasileiro se firma, portanto, a partir do século XVIII, com a Contra-reforma. O Brasil se torna independente em 1822 e passa a valorizar tudo que o possa distinguir da antiga metrópole. A França passa a ocupar o lugar de Portugal, como paradigma de cultura e costumes. O tráfico de negros cessa em torno de 1850, favorecendo, sem, contudo, apagar as influências Iorubá e Quimbundo, o branqueamento do português brasileiro, criado à força por Pombal. Esta koiné brasileira, como a chama Teyssier, generalizou a norma portuguesa européia do Centro-Sul, eixo Lisboa/Coimbra, tendo, entre outras conseqüências, a de eliminar as particularidades marcantes do Norte (galego). A pronúncia chiante do português europeu não se incorpora ao brasileiro, que é, majoritariamente, sibilante. A pronúncia brasileira perpetua a pronúncia de Portugal antes das grandes mutações fonéticas do século XVIII. Não existe, em “brasileiro”, oposição entre timbres abertos e fechados na pronúncia de vogais tônicas. É na pronúncia das vogais, principalmente, que o português do Brasil se distancia do português europeu. Igualmente, se distancia pela colocação dos pronomes. Um dos mais famosos poemas do modernismo brasileiro, “pronominais”5, de Oswald de Andrade (1890-1954), tematiza este tópico:
PRONOMINAIS
Oswald de Andrade
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.
Outro ponto de distância, relevante para este trabalho, é o abandono do tuteamento e do voseamento, expressões cunhados pelo recitado Teyssier. Simplificando tal código, a “língua brasileira” fixou o você para o tratamento familiar e o senhor, a senhora, para o reverente.
Em “Santiago”, Murilo Mendes se vale do tuteamento do português de Portugal, abandonado pelo português do Brasil, para tematizar a cidade de Santiago. Com isso, mais do que “contrariar” o modernsimo, do qual foi militante e expoente, ou mesmo retroceder, retoma o diálogo com a cultura galega, de modo “reverente” tão só na aparência. O tuteamento tem como função aqui remarcar uma distância – que se quer remover. O poema é construído com base em praticamente uma só expressão “Santiago de Compostela”, que se expande ao longo de suas 17 linhas.
SANTIAGO DE COMPOSTELA
Murilo Mendes
Santiago de Compostela isolada no campo,
Mas na tua direção marchou a Europa
Pesquisando paralelos Corpo e estrela.
.
Tocando Santiago recebemos o espaço,
A visão da cidade em ferradura,
O choque oval do Pórtico de la Gloria.
Na Idade Média
Participante de comunidade
– Alegre – então me sentindo,
Eu viria de longes terras tocar-te,
Cavalgando monte e rio:
Trazendo o bastão, a concha de Vênus
E a gana diária de Deus.
.
No espaço monumental de Santiago
A Espanha mede a esperança do homem,
Mede o corpo do apóstolo, sua estrela concêntrica.
Não só a estrela de Santiago é concêntrica, mas todo o poema, por meio de anagramas, às vezes incompletos – que se multiplicam e tem como “ofício” não abrir diretamente os aspectos profanos de sua visão da cidade: “a concha de Vênus”. A palavra “isolada” está embutida em Santiago. “Campo” em Compostela, que, por seu turno, abriga “estrela”. “Tocando” está em Santiago. “Tocar-te” em Compostela. “Média”, igualmente em Compostela. E “corpo”, quase que inteiramente em Pórtico (de la Glória) – a dar pistas de suas intenções com a cidade.
É de se assinalar ainda a presença do verbo andar no gerúndio em “pesquisando” e “cavalgando”. Andar está, da mesma maneira, anagramatizado em “Santiago de Compostela”. O verbo anota a presença dos peregrinos históricos e registra também o ser vivo que a escreve. De se ver que “espaço” contém passo, reforçando este caminhar, este novo caminhar. Notável é, sobretudo, o anagrama mãe, que se extrai de “Compostela” – o campo de estrela, que é mãe. A mãe é, no entanto, profanizada (e violada) com as palavras “ferradura” e “oval” – que desenham claramente a genitália feminina – e com “bastão”, que remete ao ato sexual puro e simples. O tuteamento é, no caso, mera estratégia de reaproximação e de reafirmação da modernidade brasileira, muito além do universo português.
O poema reescreve, na verdade, o mito do apóstolo São Tiago, dando-lhe perspectiva de ser vivo e profano. O corpo de São Tiago morto e encerrado num esquife, reaporta em águas de Espanha, no século IX e, na voz de Murilo, na década de 50. Uma estrela indica a localização do corpo, que é então transferido ao campo da futura Santiago. O próprio Mendes, anos depois, num ensaio curto diria: “O culto do apóstolo determinou um movimento progresssista/ civilizador”6. Inequívoco, por conseguinte, o sentido que deu ao seu poema. Mas por que Mendes se utilizou da transposição das letras da frase “Santiago de Compostela” para compô-lo? O galego-português e a cultura galega funcionam, para a “língua brasileira”, como espécie de “Cora” (na acepção de Julia Kristeva) – ou território, que traz em si as memórias mais fundamentais dos laços desta nova língua com o corpo da mãe. O galego atua como elemento de desrepressão (opressão provocada pelo português de Portugal até 1922), oferecendo na condição de corpo genuíno de mãe, as contradições aparentemente sem sentido, os transtornos, silêncios e ausências perdidos com a ordem simbólica instaurada pelo português. O galego vale, a meu ver, para a segunda geração de modernistas como dimensão heterogênea mais do que da língua da linguagem e, assim, nestes moldes, reifica a recusa dos primeiros modernistas à norma imposta pelos portugueses e, ao mesmo tempo, dá a ele, galego – diversamente da atitude dos portugueses a partir do século XIV – valor mítico, valor semiótico, traço, marca, semeion, mas, sobretudo e por isso, distinção enquanto diferença e não distinção enquanto separação ou fatalidade histórica. Este poema de Murilo Mendes revela, por outro lado, o caráter instável das línguas. A riqueza reside no fato de não terem elas identidade fixa, mas sim identidade instável. Tal como o ser, a língua como sujeito em processo – aceita por alguns, rejeitada por outros. Julgada, não só pela ordem dos símbolos, mas pela espiral do semeion. Julgada pelos poemas que é capaz de provocar inclusive em outras línguas – como a brasileira.
. . . . .
3. PÓSFALA
Pensando nos versos: “[…] Herbas de prata e de sono / cobren a valeira lúa […]”, do “Madrigal a Cibdá de Santiago”, de Lorca, mas pensando sobretudo nos mitos afro-baianos de Oxumaré e Iemanjá escrevi “Poema”. Oxumaré, filho de Iemanjá, a violou, tornando-se protagonista do incesto originarário e pai dos deuses. Oxumaré é, também, uma ninfa com o nome de Bessém, responsável pela comunicação entre as esferas “superior” e “inferior” do cosmo. Ele transporta as águas da terra (lembrando, neste ponto, São Tiago) para o céu, por meio do arco-íris, que é uma de suas epifanias. É conhecido igualmente com o nome de Dan. Está sincretizado com São Bartolomeu. Iemanjá, sincretizada com Nossa Senhora, a Virxen, é a deusa das deusas, a Magna Mater, a divindade suprema do mar e das águas doces.
POEMA
Régis Bonvicino
Iemanjá
de tão branca
Vela o vento
erva
que cobre os leitos
Arzúa,estrela
León
Virxen
Um de teus nomes
Jaca, Nájera
Sangüesa
Las Médulas
ou Ruta
de los Dinosaurios
acordando
Santiago
·
A lua em Virgo minúcia pura
exuberante
ramo de arruda
azul
Cangas de Onís
Estella,úmida
luxo
para o Buda
·
manjar azul
dos deuses arco-íris
de Dan
Eco de Liríope
Excelsa Mãe
dança
e seu cavalo
balança o mar
São Paulo, abril de 1999
Notas
1. TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. Trad. Celso Cunha. São Paulo, Martins Fontes, 1997.
2. MENDES, Murilo. “Santiago”. Tempo espanhol. Lisboa, 1959.
3. DESCREVE O QUE REALMENTE SE PASSARA NO REINO DE
ANGOLA, QUANDO LÁ SE ACHAVA O POETA
SONETO
Parar la vida, sin sentir que para,
De gustos falta, y de esperanzas llena,
Volver atrás pisando en seca arena,
Sufrir un sol que como fuego abraza.Beber de las cacimas água basa,
Comer mal pez a medio dia y cena,
Oir por qualquer parte una cadena,
Ver dar açotes sin piedad, ni tasa.Verse uno rico por encantamiento,
Y señor, quando a penas fué creado,
No temer de quien fué conocimiento;Ser mentiroso por razon de estado,
Vivir en ambición siempre sediento,
Morir de deudas, y pezar cargado.
4. TEYSSIER, P. Op. cit., p. 111 e seguintes.
5. ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. Paris, Sans Pareil, 1925.
6. MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1994, p. 1125.