Bush é a obra-prima do presente
Eduardo Milán está entre as três dúzias de poetas que contam hoje no mundo, após a queda da razão utópica (anos 1980) e do reconhecimento – por parte dos artistas inclusive – da ordem mundial como presente infinito. A poesia é hoje, tanto quanto a arte, uma produção acrítica. Além de poeta, Milán, nascido em Rivera, Uruguai, em 1952, é também excelente crítico de cultura. Seu pai foi preso político de 1973 a 1985, em virtude de sua militância tupamara contra a ditadura militar de então, o que obrigou Eduardo a exilar-se, em 1979, na Cidade do México, onde reside há quase trinta anos e leciona, no momento, literatura na Universidade del Claustro de Sor Juana. Publicou vários livros de poesia e de crítica. Aqui, nesta entrevista, duvida menos de Barack Obama e mais do próximo ou de qualquer presidente dos Estados Unidos. Não se alinha entre aqueles que acreditam que só com o acirramento das contradições ocorre mudança, mas, é cético em relação a ela, a mudança. Não ignora os danos, em minha opinião, irreversíveis que George Walker Bush causou às liberdades civis não só dos norte-americanos, mas de todos os cidadãos do mundo. Não ignora sua indiferença ao aquecimento global e a destruição do Iraque – e do Museu Nacional de Bagdá, no qual se guardava a história da civilização babilônica. Todavia, numa análise de fundo, vê mais sombras do que luz. Discordo, em parte, de suas análises, no que se referem à eleição do senador Barack Obama, que, embora atado ao destino de conduzir, caso eleito, os Estados Unidos e seus interesses hegemônicos, vai certamente estar engajado em questões centrais como aquecimento global, restauração constitucional de direitos civis, multilateralismo. O ex-presidente Bill Clinton deixou as coisas claras na convenção do Partido Democrata: “People the world over have always been more impressed by the power of our example than by the example of our power” – as pessoas sempre se impressionaram com o poder de nosso exemplo (leis) do que com o exemplo de nosso poder. Melhor Obama do que Sarah Palin, candidata à vice-presidência pelo Partido Republicano, que processa, como governadora do Alaska, o governo Bush porque listou os ursos polares alasquianos entre os animais em extinção
RÉGIS BONVICINO: Como você vê os Estados Unidos e seu papel no mundo depois de oito anos de governo George Walker Bush?
EDUARDO MILÁN: Só é possível, para mim, considerando o “mundo de espetáculo” de hoje, acreditar na contradição entre o que não foi (por traído, pervertido, subjugado e objeto de humilhação) e este presente. O futuro é aleatório. Todavia, depende de nossa consciência de sua necessidade. Bush não é o impossível realizado. É a conseqüência brutal da queda vertiginosa da mediação política em nível de representação. Sob parâmetros políticos de cinqüenta anos atrás, Bush não seria possível, imaginável. Sob o ponto de vista do agora, é uma figura emergente, descarada, um “novo rico” (embora herdeiro de família abastada), representativo de muitos políticos atuais, um político que chega a colocar em questão o Estado e os próprios países nos quais existe democracia para alavancar o modelo neoliberal. Bush é igualmente conseqüência do nível estético dessa época: seu cinismo, que esmaga a figura retórica da ironia, sua solenidade falsa, exemplo de sua “letra”. Reconheço: ele é a obra-prima do presente. É a “consciência” pragmática levada ao seu limite expressivo: alguém que não pode falar porque transborda de seu próprio ato. Bush é uma convulsão estética, um ataque, que representa os Estados Unidos. E mais: pode-se ficar chocado com esse “Bush inimaginável”, mas não é sequer ainda a realidade. A realidade é que os Estados Unidos não podem renunciar – salvo por pressão dos fatos – à sua pretensão (não já à sua realidade) hegemônica.
Obama ou Mick Jagger?
RB: O que espera de Barack Obama?
EM: Gostaria que Obama renunciasse à hegemonia norte-americana, que, na prática ou de modo simbólico, mas nunca imaginário, Bush catapultou, lesando o mundo. Mas esse desejo revela apenas mentalidade dependente e a necessidade de se abolir – para as vítimas objetivas de Bush e dos Estados Unidos – toda a representação política. Deseja-se o “amigo” Obama. Mas ele provavelmente vai ser o próximo presidente dos Estados Unidos! Quando o vi passar a mão na cabeça de 200 mil alemães, no comício em Berlin, pareceu-me o pastor evangélico Richardson, da Califórnia (e mais obscuro do que ele) ou Mick Jagger (e mais esbelto do que ele). Confirmou-se deste modo como figura de espetáculo. Passou sua mão na cabeça dos ouvintes como quem dá uma benção esperançosa. Os meninos de rua, que limpam os pára-brisas dos carros, passam as flanelas no alto dos vidros. Com uma diferença em relação a Obama: estão nas pontas dos pés e não os alcançam. Imagino que a classe média pensante da América Latina, ao confundir os Estados Unidos com parte de sua boa produção artística na área erudita, não quer que os Estados Unidos sejam o que são. Esquece a realidade do capital e – pior – sua própria realidade. Os bárbaros não queriam que Roma fosse distinta do que foi. A esquerda tem um problema: Obama é negro. A direita tem um problema, embora menor (o capital não é racista, o tempo passa…): Obama é negro. A população negra sente-se redimida pela “justiça histórica” com a presença de Obama. Talvez, daqui a pouco, a esquerda não tenha mais esse problema, quando Obama romper o espelho da imagem vendida e for o que pretende ser: presidente dos Estados Unidos. A esquerda vai se dar conta que a contradição racial foi absorvida pela contradição maior: a força do capital e de seus interesses, que visam à hegemonia, sempre. A história ensina que nenhuma esperança vem de um presidente. Se há alguma – e tenho minhas dúvidas – vem da mudança do modelo. O espelho de Obama começa a se estilhaçar. Obama não elege, só pode ser “eleito”. E desconfio dos que não podem “escolher”.
RB: Caso Obama se eleja em novembro, a América Latina seguirá como mero quintal dos Estados Unidos? Seu parceiro preferencial será Álvaro Uribe, presidente da Colômbia?
EM: Homens não são sistemas, por mais que, em determinados momentos, resultem em figuras de encarnação (a fábula dos “homens justos no momento certo”), como Barack Obama. Quando ainda disputava as primárias com a senadora Hillary Clinton, um amigo me disse que ele era “muçulmano”. Pensei: perfeito! O sistema absorveu as contradições, absorveu o poder do Outro (mundo islâmico). Essa estratégia implacável, que está inscrita no capital, revela o cenário de simulação caótico do mundo de hoje. A simulação do caos é uma técnica de controle que anuncia a realidade vindoura do controle: se tudo é possível, tudo é possível. Ou seja, é possível o Obama bom (em meio a este caos que influencia a opinião pública) ou o Obama mau: o caos serve às duas direções. Se, todavia, amanhã essa estratégia se alterar, é apenas parte de si mesma. É como não acreditar nas realidades da Rússia e da China, dois “impossíveis” que igualmente se lêem como “milagres”: um “negativo”, a delinqüência russa, outro “positivo”: a hiper-realização econômica a qualquer custo chinesa, ao custo do desumano. Rússia e China são herdeiros diretos de uma proposta socialista degradada. “O melhor, degradado, é o pior”, ensinam os latinos, peritos em decadência. A estratégia dos Estados Unidos para a América Latina e, em especial para a América do Sul, é, com Obama, ainda baseada em Monroe: a quarta frota. É preciso, então, ter algumas aulas com Álvaro Uribe.
RB: Qual é a importância do espírito crítico, tanto em arte quanto em política?
EM: Não distingo, na escritura, a ação poética da política. A crítica cumpre distintas funções: revelação do mecanismo que o objeto quer ocultar, denúncia, desmantelamento, rearticulação da linguagem-objeto. Quando há crítica, o objeto criticado deixa de ser o que era. A crítica trabalha para a consciência. Por isso é humilhante a crítica – como o filósofo alemão da Escola de Frankfurt Theodor Adorno (1903-1969) a desmascarou – que simula enfrentar para celebrar com “as armas da rebelião”.