Exposição da artista plástica Regina Silveira em Washington rompe com as narrativas industrializadas
A artista plástica e professora Regina Silveira está, no momento, expondo seu mais novo conjunto de trabalhos – intitulado Dilatáveis – no Brazilian American Cultural Institute, em Washington, Estados Unidos. Regina é uma das principais artistas brasileiras. A exposição foi inaugurada em 25 de fevereiro e permanece aberta ao público até 25 de março.
O que são os Dilatáveis? O título da exposição é, em si, poético. E sugestivo. A palavra dilatar – ainda que em estado de dicionário – esclarece: aumentar as dimensões ou o volume de alguma coisa. Estender, alargar, ampliar, mas, ao mesmo tempo e contraditoriamente, retardar, adiar, prolongar.
Essa ambigüidade de sentidos está presente nesta nova série organizada por Regina. A série se constitui numa seqüência de imagens dissociadas de suas sombras verdadeiras. Pequenas imagens de homens – em certas situações – com sobras enormes. São imagens originalmente fotográficas, retiradas de jornais e revistas e pintadas e serigrafadas em lonas, depois de sombreadas.
O “consumo” de imagens da mídia por parte dos artistas é fato corriqueiro desde, pelo menos, a segunda metade do século. Não reside nessa “atitude”, portanto, a qualidade do trabalho de Regina, que se assemelha – aparentemente – à maioria da produção atual vinculada às vertentes que – genericamente – se pode chamar de “conceituais”. As desmaterializações que a artista promove, no caso, são mais consistentes e talentosas.
Dilatáveis trabalha com fotos de políticos, autoridades, personalidades esportivas, motoristas de tanques de guerra. Ocorre que Regina devolve às meras imagens um sentido de personagens. Seu trabalho tem força narrativa. Alguma coisa – que talvez não se constitua em história – está sendo dita, narrada. As enormes sombras são críticas em relação às pessoas que as projetam e em relação ao olhar, de modo geral. Está certo Carlos Basualdo quando diz que, referindo-se a outro semelhante de Regina, “a desproporcionalidade entre sombras e objetos gera um processo que vai além da anamorfose em sua violação das leis da perspectiva” (Revista ArtForum, Nova York, novembro de 1993).
As questões tratadas por Regina, neste trabalho, remontam ao impressionismo (final do século XIX), momento em que se inicia a dissolução da figura na pintura. Giulio Carlo Argan observa que os impressionistas acentuavam o que a recém-inventada imagem fotográfica não podia reter: a cor. Hoje, a fotografia, a TV, a mídia em geral retém e opera basicamente com a cor. Importa então – ao lado do poder narrativo – restaurar aquilo que as imagens midiatizadas não conseguem explicitar: o conteúdo sombrio das fotos, que transformam pessoas, situações, histórias e a própria História em imagens.
Cuida-se de “romper” com o tratamento figurativo que os ícones “midiatizados” emprestam às imagens. Trata-se de “romper” com narrativas industrializadas. Romper aqui no sentido de se tentar impedir, embora sem resultados, um comportamento mecanicista diante da vida.
O crítico Basualdo afirma que, apontando a cisão entre os objetos e suas sombras na série In absentia, de 1983, a autora apontava, no fundo, para a falta de limites – na verdade desnecessários no mundo contemporâneo – entre cópia e original. A questão se complica quando a cisão se dá entre homens e suas sombras. No primeiro trabalho do conjunto, intitulado “O discurso”, uma enorme sombra de uma autoridade lendo um texto [a partir de uma tribuna] parece querer esmagar os supostos ouvintes ausentes. Dá-se a proeminência total – quase totalitária – da ex-figura, agora sombra, lendo algo. É como se a realidade se materializasse – paradoxalmente – em sombras.
Inquietante é também o personagem que, batendo continência, projeta – para lados opostos – quatro sombras idênticas. Ou ainda a extensa sombra de um tanque de guerra, recortada em preto asperamente no branco, reafirmando sua certeza fálica no poder. Se isso não bastasse, Regina projeta as sombras de seis máximos governantes internacionais – expostos lado a lado – e, apesar da desfiguração, eles permanecem “reconhecíveis”, como alvos a serem mirados. Suas sombras os revelam como verdadeiros personagens de Hieronymus Bosch: corcundas, com olhares parados, mas estranhamente altos, elevados, sabe-se lá por quê. Sombra é imagem sem brilho. É a “imagem” antimídia.
Regina é a artista de uma poética lunar, de revelar por meio de ausências. Os Dilatáveis trabalham com o problema da refiguração ou da representação de sentidos invisíveis. Eles revelam personagens marionetes. Personalidades que são bonecos infláveis operando num “real”congelado. São “sombras arquetipais”, que tentam devolver uma certa dimensão de existência – para além da mera projeção – às figuras. Para além dos banais e inconsistentes “estranhamentos” da arte atual (no Brasil e no mundo), Regina consegue projetar idéias e reinventar espaços perceptivos com elegância e humor.
Notas:
[1] Publicado originalmente na Folha de S. Paulo em 13 de março de 1994