Régis Bonvicino | 20 out 2014 | Cultura
Entrevista concedida em dezembro de 2012 e agosto de 2014 a Jonas (J) Magnusson, membro da revista sueca OEI, publicada ainda em papel, ainda em formato livro.
Jonas (J) Magnusson: Régis Bonvicino, você deu à revista Sibila o subtítulo de “poesia e cultura” e depois de “poesia e crítica”, Sibila que você edita desde 2001. Você fala de Sibila como sendo um “projeto de liberdade”. Pode dizer-nos alguma coisa a mais sobre a concepção desta revista e suas condições? Sobre seus objetivos iniciais e até que ponto vocês têm conseguido realizá-los?
Régis Bonvicino: Sibila foi criada para ampliar um diálogo com poetas do Brasil e do mundo inteiro, não apenas do Brasil; para se ter um ponto de vista internacional, para formar uma comunidade que pudesse compartilhar ideias como a de alguma inovação – mas uma inovação contemporânea, não passada, não saudosista. E também para focar em uma questão importante, que parece haver sido abandonada pelo mundo afora, mas que é uma parte que conta muito na literatura: a crítica literária. Dessa forma, Sibila tenta ser livre, na medida em que pensa e permite pensar, e ela concebe um tipo de poesia forte e independente. Ao mesmo tempo, eu sinto que nisso estamos de certa forma sozinhos… um tipo de solidão que partilhamos com amigos locais e amigos internacionais… Mas eu gosto do projeto, um projeto que está sempre aberto a transformações. Já desde uns cinco, seis anos atrás, o objetivo principal tem sido o da crítica, em relação à poesia, em relação à produção de poesia… crítica independente… não há arte sem espírito crítico. Eu poderia passar dias falando sobre a Sibila, que está hoje entre os maiores arquivos digitais de poesia da América Latina, sem verbas estatais, bolsas, apoios públicos, ou universitários. Ainda bem que é assim.
J(J)M: Como organiza o trabalho editorial? Como é editada Sibila?
RB: Às vezes o processo pode ser bastante caótico! Recebemos uma porção de contribuições e temos um núcleo duro de pessoas que escrevem. Nada é pago, o trabalho é voluntário. Às vezes, criamos séries. A revista eletrônica tem custo baixo, enquanto antes, quando era impressa, os custos eram bem mais altos. Fazer “livros” no Brasil é muito caro e as livrarias não gostam de revistas e eu diria até que de livros! Dessa forma, em 2006, depois de 11 números impressos de Sibila, achei que não tinha sentido continuar na mão de intermediários e assim começamos a versão digital. Não vejo volta possível para o papel. Na Europa, quem sabe, a situação seja um pouco diferente.
J(J)M: Em seu texto, “The Displacement of the ‘Scholastic’: New Brazilian Poetry of Invention”, você volta a Oswald de Andrade e faz remontar o início da modernidade ao começo da década de 1920, no Brasil. Você cita o manifesto de 1924, de Oswald, “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”: “Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio…”.
RB: Mas “Apenas brasileiros de nossa época”, de 2011, de 2012, capazes de responder às questões de agora. Modernidade? O mundo todo tem trabalho escravo.
J(J)M: Nesse mesmo texto você escreve, comentando: “Aqui estão, concentradas, as questões que todos os poetas brasileiros, de qualquer movimento – mesmo os poetas independentes – tentaram tocar. Exportar a poesia brasileira queria dizer – e ainda quer – colocar o Brasil num diálogo ativo com os poetas de outras línguas, de maneira que deixe de ser apenas o receptáculo passivo de influências”. Exportar a poesia brasileira derruba a condição de “ser periférico”… Como isso liga a noção de “antropofagia” com a ideia de incorporação enquanto “canibalismo”?
RB: O texto é do começo dos anos 1990. A noção de “antropofagia”, obviamente, é importante, mas não sei quanto sentido possa fazer para mim, enquanto poeta, hoje em dia. Contudo, os manifestos de Oswald são importantes por serem abertos. A poesia, tal como a vejo, não é dedutível de alguma fórmula e é isso que Oswald de Andrade diz, em uma escuta mais fina. Nos ismos e vanguardismos e contrarreformas você tem uma tese, uma fórmula, que aponta, de um modo geral, a maneira “correta” de se fazer poesia. Muitos movimentos de vanguarda não me agradam por sua tendência à fórmula, embora tenham sido vitais. A poesia, tal como a vejo, é algo possivelmente sempre novo, uma invenção constante, tem que surpreender em algum nível do não reconhecido como literário.
J(J)M: No primeiro número da revista S/N: New World Poetics (2010), Charles Bernstein publicou um texto com o título de “Our Americas: New Worlds Still in Progress (Part One)”, em que se referia ao “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade, de 1928, como sendo a “primeira defesa contra a ‘Caixa Ocidental’ (‘The Western Box’)”, como “um processo canibalizador da autocriação”. “Somente a antropofagia nos une” […].
J(J)M (cont.): Em “Poems and Poetics” de Jerome Rothenberg, em 2011, você publicou um trabalho que pode ser lido como uma espécie de contraproposta ao texto de Bernstein. No texto que você escreveu, com o título de “A improvável Poesia das Américas”, você declara que, levando em consideração o papel de superpotência mundial dos Estados Unidos, o fato de se falar em uma “Poesia das Américas” sempre implicaria, até certo ponto, falar de uma poética da centralidade. E essa centralidade da Poesia das Américas deveria, acima de tudo, ser entendida historicamente. “Não existem poetas brasileiros ou hispânicos que tenham influenciado a poesia americana. Com efeito, pelo que eu sei, a poesia da América do Norte, em prática, é autorreferente.” Você mencionou a existência de casos em que “O antiamericanismo, ou, pelo menos, um sentimento de resistência contra os Estados Unidos, é uma espécie de elo faltante na maneira como certos blocos sul-americanos se juntam”, e você cita a tentativa de Oswald de Andrade de “romper com o colonizador português” e sua proposta, em sentido lato, de “colonizar todos os colonizadores”. “Vamos separar Poesia Importada e Poesia Pau-Brasil” (1924, “Manifesto Pau-Brasil”). Você está dizendo que o “mecanismo antropofágico”, imaginado em 1928 e expresso no “Manifesto Antropofágico”, é um “‘filtro nacional’ usado para se lerem materiais vindos do estrangeiro, é o instrumento que permitirá forjar uma poesia nova – uma poesia nova e diferente, uma ‘poesia para exportação’”. E acrescenta: “Essas palavras, visando diretamente o colonizador português, foram entendidas como aplicáveis também aos Estados Unidos […] e não existe falta de argumentos históricos para tanto”. Essas “observações básicas”, então, levaram você a expressar certo ceticismo, a expressar a opinião de que a “Poesia para as Américas” não passa de “uma esperança, uma semente utópica, cuja unidade – paradoxalmente –, quando formulada, introduziria necessariamente o ovo de uma serpente ideológica. Formulado nos termos de Charles Bernstein, eu entendo que sobressai o conceito de um ecumenismo benigno, enquanto tentativa civilizadora de domar a selvageria globalizante, cujo efeito mais direto para a poesia seria o de fazer com que os poetas entrassem em contato uns com os outros”.
Entretanto, “não há coisas com uma identidade poética das Américas. No Brasil sequer usamos o termo “Américas”. O continente parece estar dividido – uma vez por todas – em três blocos: Estados Unidos e Canadá; América hispânica (México, Caribe e América do Sul), e Brasil, o único país de fala portuguesa”…
RB: Eu escrevi esse texto, gosto dele e nada teria a acrescentar.
J(J)M: Mas a poesia concreta de Noigandres podia, é claro, ser vista também como uma consequência lógica das coisas feitas anteriormente no Brasil, na medida em que Haroldo, por exemplo, se valia muito de Oswald de Andrade… De qualquer maneira, tanto por bem, quanto por mal, foi um movimento muito influente. E por falar em movimentos: em seu texto já mencionado, o que você publicou em Boundary2, você escreve que “uma das características da poesia brasileira do século XX tem sido a organização de movimentos literários, numa ‘forma’ que evocava a das vanguardas europeias e norte-americanas literárias e de artes plásticas”. A poesia concreta foi um desses movimentos brasileiros que, no seu começo, foi experimental e exploratório e indicador de caminhos, mas – mais tarde – reduziu-se cada vez mais a autores individuais e se tornou bastante parnasiano etc. Mas existiram também outros movimentos experimentais no Brasil, nas décadas seguintes, como o Poema/Processo, a Poesia/Praxis, o “Pornismo”, a “Poesia Marginal”, o Tropicalismo… Eu sei que tanto o Tropicalismo como o diálogo com a Poesia Concreta foram importantes para você, em sua juventude. Mas a energia experimental do Tropicalismo, que começou como um movimento artístico de contracultura, na São Paulo de 1967-68, esvaziou-se por volta da metade da década seguinte, não é?
RB: Sim, pela indústria da música pop, em que você tem que ser comercial, em que você tem que se dirigir a grandes audiências, a milhões. Os primeiros anos foram bastante interessantes, mas depois ele perdeu seu caráter excepcional. Há um ótimo poeta daquele momento, Torquato Neto, que morreu muito jovem, em 1972, uma espécie de Brian Jones do Tropicalismo, pela morte precoce e a carga trágica. Torquato foi ótimo letrista de mpb (suas letras sobreviveram ao caráter de “intervenção” da época, ao contrário das letras de quase todos os outros letristas do grupo), poeta, prosador com os diários que fez em um manicômio, cineasta pendente, crítico, colunista de jornal. Sua obra permanece. Poderia mencionar também o grande José Agrippino de Paula, prosador e cineasta. O Tropicalismo foi importante por haver reunido músicos clássicos, Rogério Duprat, Julio Medaglia e outros, e pop-stars em ascensão, poetas e gente de teatro – uma mistura muito peculiar. Caetano Veloso é a sua personagem principal. O Tropicalismo promoveu – e aí reside sua importância maior – um confronto com o então hegemônico nacional-popular, hegemônico sim pela direita e pela esquerda, porque havia um nacional-popular de direita no Brasil com traços em comum e intersecções com o da esquerda: por exemplo, a preservação das tradições e “da unidade nacional”, tão cara aos ditadores. Ariano Suassuna, um nacional-popular, apoiou os militares. O Tropicalismo acabou também por combater a ditatura de um modo complexo e inteligente. Mas terminou, acho, nunca segui direito mpb, por volta de 1975, quando a indústria da pop-music se tornou demasiado poderosa no Brasil.
J(J)M: Você editou um livro com as cartas de Leminski a você. Na Boundary2 você caracteriza a poesia de Leminski como, ao mesmo tempo, refletindo “o esvaziamento das vanguardas, que se tornaram produtos de consumo” e sintetizando “as tensões entre inovação e espírito contemporâneo, de um ponto de vista da independência e do diálogo brasileiros”. Finalmente, você chega ao ponto de declarar que Leminski consegue, “através da negação, resgatar a capacidade de inovar e diversificar que caracteriza a poesia brasileira contemporânea, uma capacidade que vai além do discurso militante e da rigidez dos movimentos”…
RB: Ele foi importante, escreveu o Catatau (1975), uma longa prosa joyceana-hippie, um livro e tanto. Ele é muito conhecido no Brasil. Ele merece realmente ser mencionado. Ele é, ainda, superior a 97,5% dos poetas de hoje.
J(J)M: Você citou algumas poucas vezes a frase de Ezra Pound, que poesia é “poetry news that stays news”.
RB: Sim, concordo com esta frase de Ezra Pound. Ele estava se referindo aos jornais: você lê um artigo, gosta dele e o guarda. Uma semana depois você o pega e o relê – esta é uma ideia de inovação de que eu gosto, porque tem uma base na realidade. Um poema que represente uma inovação será sempre útil para alguma coisa, para fazer pensar, para… Mas já não uso o conceito de inovação tão frequentemente como antes. Já não gosto tanto assim daqueles conceitos históricos de inovação. Ele precisa ser redefinido. Não sei exatamente o que possa significar, por exemplo, “inovação” nos Estados Unidos, uma vez que eles são, por definição, a terra da inovação… Então “inovação” tem um significado peculiar nos Estados Unidos, outro no Brasil, outro na Suécia, na China… Inovação é um conceito relativo e pode se tornar uma contradição concebida como uma tradição.
J(J)M: Há também muitos artistas no Brasil que se autodefinem explicitamente “artistas de invenção”, como Paulo Bruscky, como Abraham Palatnik…
RB: Sim, mas não posso dizer isso de mim!
J(J)M: Da última vez em que nos vimos, discutimos, entre outras coisas, a noção de vanguarda e seu desaparecimento como forma contemporânea. Mas, ao mesmo tempo, Sibila poderia ser lida como um exemplo do fato de que resta a tarefa de se escreverem as histórias, ou as histórias alternativas, dessas vanguardas…
RB: Concordo e discordo de você. Você parece querer forçar relações, quando a arte é muito dinâmica e os tempos propõem desafios diversos. Os parâmetros da Sibila são outros.
J(J)M: E nós mencionamos o exemplo de Julio Plaza. Vocês eram amigos e você escreveu algumas vezes na Sibila sobre os seus “Poemóbiles” (1975), por exemplo, seus poemas móveis, ou livros-objetos. Quem sabe você possa nos dizer algo mais quanto à importância de Julio Plaza e como o considera hoje?
RB: Julio Plaza foi e é um artista injustamente esquecido. Talvez ele tenha sido sequestrado por interesses menores e vis. Nasceu na Espanha, morou em Porto Rico e encontrou uma excelente artista brasileira, Regina Silveira; aí se mudou para o Brasil. Fugia da ditadura do general Franco – e acabou encontrando outra ditadura, aqui no Brasil. Sua consciência política era impressionante e ele possuía uma mente crítica poderosa. Pertencia à tradição de Marcel Duchamp e dos anarquistas espanhóis, mas não em termos superficiais, ele era muito sério, muito radical: abandonou a arte – como gesto crítico – muitos anos antes de morrer. O esquecimento em que caiu Julio Plaza é injusto porque, de fato, ele é um dos mais importantes nomes das artes brasileiras. Só tenho coisas boas a dizer sobre ele, e cheguei a publicar uma revista, com ele, em 1975 até 1983, chamada Qorpo Estranho. Julio Plaza foi um mestre, para mim, da mesma forma que sua mulher, Regina Silveira. Nós estudávamos, trabalhávamos, pensávamos, pensávamos a política, a arte, ao mesmo tempo, com o sentimento de estar contra, com o sentimento de que podíamos ser livres. Havia um diálogo, uma comunidade de poetas, artistas plásticos, pensadores, músicos e artistas da mpb no Brasil, na década de 1970.
J(J)M: Você publicou uns doze livros de poesia. O primeiro, Bichopapel, em 1975. Que tipo de livro foi aquele?
RB: A ditadura foi o tema principal desse livro. Eu estava muito aturdido com a ditadura; fui aluno de Frei Tito de Alencar em 1969, torturado e induzido ao suicídio pela ditadura logo depois, e ele me impactou muito e esse impacto perdurou. Na verdade, eu nunca falo sobre a minha poesia ou muito raramente sinto-me à vontade de dizer alguma coisa.
J(J)M: Mais cedo, hoje, ouvi uma leitura que você e Charles fizeram em Nova York uns dois anos atrás, e havia aquela peça engraçada de 2006, chamada “Definições do Brasil”, escrita em colaboração com Charles:
“Brazil is located on the southern tears of the Americas
Brazil is a jungle with snakes who eat cakes
Brazil speaks Lebanese, Portuguese, Japanese, Guarnaríse, Tupiese, Inglese
Brazil is an adulterating medley of intoxicated syncopations
Brazil has no relationship with itself because it has a relation only to itself
Brazil lays its cool hands on your hot head
Brazil was colonized by Indians who turned the Portuguese into natives
Brazil’s Tolstoy is now doing tricks in a favela
Brazil is a land of palms and psalms
Brazil is the model of a model
Brazil is a charm bracelet that has become the necklace of the continent: São Paulo more European than St. Paul, Brazillia more bureaucratic than Geneva, Rio more alluring than Boca
“They’ve got an awful lot of coffee in Brazil”
In Brazil, the cuckoo sings “macaw, macaw, macaw”
Brazil is private property of no man’s God and no woman’s Fury
The patron saint of Brazil is its dreams, just as is its Devil
Brazil is a carioca not a polka
Brazil is Carmen Miranda’s Tutti Frutti hats, Caetano Veloso’s all-weather tropicalismo, Bebel Gilberto’s number on the charts.
Brazil is the Ellis and Tom “Waters of March” International Airport and Spa
Brazil is caipirinha with feijoada (caipira with fedora)
Brazil is home of the cassava or tapioca, what you call yuca, or mandioca or aipim or moogo or macaxeira or singkong or tugi or balinghoy or manioc
Brazil is the black mask of the PCC inscribed with the words traitor, betrayer
Brazil is 186 million stories, 186,000 poems, but only these definitions
Put your stocks in Brazil and your bonds in China, or is it the other way around?
Brazil is a figment of the imagination of the Amazon
If Pelé is poet laureate of Brazil, without ever writing a word, then Ronaldo Gaúcho is the Nijinsky, without ever having set foot in the Ballet Russe
Brazil is not emerging it’s proliferating
The official religion of Brazil is not just samba but macumba and umbanda, tarantella and churrasco
Candomblé is the Brazil wood of world philosophy
Brazil is Fred & Ginger Flying Down to Rio with Dolores Del Rio
Under the veneer of its vivacity, Brazil is violent, a vile viper playing a violet viola.
In Brazil, anything goes for a chance, for a price, for a piece, for a dance, for a fight, for a night; jeitinho brasileiro is born free but everywhere in chains
Brazil’s face never shows its heart even when they are identical
Brazil stars Bob Hoskins, Jonathan Pryce, and Robert DeNiro
Brazil was written by Terry Gilliam and Tom Stoppard
Brazil is concrete and syncretic
Brazil is impenetrable and forgiving
Brazil is cannibalizing and carnivallizing
Brazil is a baroque barcarolle with a bossa nova beat
Brazil’s Lula is a little loco, but not as loco as Lucy
On Ipanema beach, at the very moment when dusk turns to night, you can hear Orpheus singing for Eurydice; he sings an elegy called Brazil
In Brazil, the real is the only currency that counts”
RB: Sim, o poema tem uma gênese engraçada. Arkadii Dragomochenko, o poeta russo, veio ao Brasil em 2006, para um encontro organizado por mim e por Alcir Pécora. O encontro chamava-se “A poesia em tempo de guerra e de banalidade”. E Dragomochenko pediu-me para escrever alguns versos sobre o Brasil, em inglês, para ele, um poema que ele iria publicar na Rússia, num jornal. Um poema diretamente sobre o Brasil! Nunca havia escrito um poema desse gênero antes, e jamais teria pensado em fazê-lo, falar sobre o Brasil enquanto uma “abstração”, mas Dragomochenko insistiu, insistiu, insistiu. Então escrevi algumas linhas, umas vinte, vinte e cinco e ele ficou muito feliz com o resultado. Só que meu inglês está longe de ser perfeito e eu não me sentia seguro. Assim escrevi ao Charles e lhe disse: eu quero um poema em inglês, nessa direção. Em outras palavras, tornei-me o “diretor” de Charles. Ele pegou algumas de minhas linhas e “melhorou-as” no sentido em que eu lhe havia indicado. Acabou sendo uma colaboração.
“Brazil is located on the southern tears of the Americas” (O Brasil se encontra nas lágrimas/tesouras/cortes meridionais das Américas) – este é um verso de Charles, por causa do duplo sentido de “tears”. “Brazil is a jungle with snakes who eat cakes” é um verso meu. “Brazil speaks Lebanese, Portuguese, Japanese, Guarnaríse, Tupiese, Inglese” – isso é tipicamente Charles! “Brazil is an adulterating medley of intoxicated syncopations” – novamente, Charles. “Brazil has no relationship with itself because it has a relation only to itself” – isso é meu, da mesma forma que “Brazil lays its cool hands on your hot head”. Isso veio de uma letra dos Rolling Stones, uma linha de “Sister Morphine” de Mick Jagger / Keith Richards / Marianne Faithfull: “Sweet Cousin Cocaine, lay your cool cool hand on my head”… Às vezes “Definições do Brasil” é um poema caótico, mas como Charles é um poeta muito organizado eu dizia a ele: eu preciso de uma linha com dois Vs e uma linha com dois Ds, logo depois da linha com os dois Vs, e uma rima nessa posição e …
J(J)M: Além de poeta e editor de poesia, você também traduziu muita poesia: Jules Laforgue, Oliverio Girondo, Robert Creeley, Charles Bernstein, Michael Palmer, Douglas Messerli…
RB: Sim, traduzir é importante, para mim, mas é também uma fonte de dificuldades. Foi rico o contato com Creeley, Messerli e Bernstein, que também me traduziram, tanto quanto Michael Palmer. Quando fui convidado a tomar parte em International Poetry Nights em Hong Kong, em 2011, o tradutor chinês me escreveu: Isso é muito difícil para mim, não consigo entender um único verso, por favor, mande-me uns cinquenta poemas, para que eu possa escolher… Mas não gosto de falar de minha poesia. Eu detesto quando um poeta começa a dizer: “Minha poesia, minha poesia, minha poesia”… “Eu e minha poesia, eu e eu, nós inventamos, nós fizemos isso e aquilo, nessa e naquela ocasião”. Jamais falei de mim mesmo num poema – nesse sentido meus poemas são bastante objetivos. O Neorrealismo italiano no cinema, Rosselini, Fellini e Antonioni, tem sido uma referência constante para mim – mais forte do que a de poetas –, por ser próximo de certa realidade… com shootings on location em cidades destruídas ou áreas rurais durante a época do pós-guerra na Itália, o detalhamento da vida de todos os dias dos pobres, a cidade enquanto ruína, a vertigem. Eu gosto bastante de A voz humana, de Jean Cocteau, de 1930, monólogo dramático que Rosselini transformou em um grande filme, por exemplo.
J(J)M: Entre os poetas brasileiros, você tem frequentemente chamado a atenção para João Cabral de Melo Neto.
RB: Porque João Cabral de Melo Neto é um poeta muito objetivo, não é um objetivista, é muito objetivo em seus poemas, e muito denso, muito fundamentado e… para mim talvez seja o maior poeta de todos os tempos no Brasil, autor de um trabalho enorme que merece tradução em todas as línguas.
São Paulo, junho de 2014
RB: Já pensei em escrever uma história brasileira da poesia, incluindo estrangeiros que viveram aqui. Muitos poetas de fora, poetas interessantes, que viveram em São Paulo, mas seus poemas nunca são incluídos, mesmo que eles tenham sido escritos aqui… o grande libanês Elias Farhat, que viveu em Curitiba, se não me falha a memória, Blaise Cendrars, Giuseppe Ungaretti, que viveu em São Paulo três ou quatro anos, o português Jorge de Sena, Elizabeth Bishop, que morou no Rio e em Minas, o romeno Stefan Baciu, um “parassurrealista”, que migrou da extrema-direita para a extrema-esquerda e residiu no Brasil nos anos 1950/1960,e outros. Eu não tenho tempo, mas essa outra história, a história internacional da poesia brasileira, deveria ser escrita. Não se trata de “influência”, esses poetas e seus poemas pertencem a nós, e não deveriam ser excluídos. O nacionalismo brasileiro é muito negativo, neste sentido. E é por isso que disse que Julio Plaza foi um grande artista brasileiro.
J(J)M: Da última vez falamos de Sibila se tornando cada vez mais uma revista de crítica de poesia, e eu gostaria de perguntar de novo qual é ou qual tem sido sua noção de crítica, ou de criticalidade.
RB: Criticalidade é um modo de tornar as coisas claras, ou de se colocarem questões quanto à poesia, ou à arte, dialogar com elas, com certo distanciamento… Criticar é crucial, a crítica é uma parte inseparável da literatura, mas no Brasil não parece existir, por enquanto. Não sei como seria na Suécia…
J(J)M: Em uma orelha de seu último livro, Estado Crítico, Alcir Pécora salienta três movimentos de seu processo de escritura. O primeiro seria um “registro bruto” de um evento, a enumeração de uma atividade caótica e das coisas, tais como oferecidas ao olho do observador. “Se Alexandre Astruc falava, em 1948, da caméra–stylo, por meio da qual o cinema se encontrou como linguagem, a poesia de Régis, por assim dizer, emula o cinema neorrealista e produz stylo-caméra, que dispensa a linguagem não submetida ao regime das coisas experimentadas pela vista”. O segundo movimento seria a contraposição, uma contra a outra, dessas imagens, na tentativa de encontrar coincidências, simetrias internas, os sons e os ritmos de suas colisões: “estratégia de choque imanentista [que] raramente se resolve numa pintura mais caprichada dos objetos, mas sim numa dinâmica narrativa capaz de mantê-los em ação. “O terceiro e último movimento apareceria como ‘força energética residual das cenas friccionadas, [que] se desdobra como breves comentários sobre a própria poesia em construção’ com um ‘desassossego pesaroso que penetra o poema’”…
RB: Como poeta, sou um pesquisador. Caminho e vejo, volto e vejo, e converso, e leio… É um tipo especial de pesquisa. Eu nunca sento e escrevo um poema inspirado. Não é uma poesia de meu escritório, de minha escrivaninha, mas do meu andar, conversar, sentir, observar, pesquisar, retrabalhar… Leva-me muito tempo, escrevo, reescrevo, pois procuro ser muito preciso, escrever poemas de forma muito precisa. Assim, o material encontrado ou o que é retirado das mídias de massa é sempre mediado, retrabalhado, surgindo mais como surpresas no meio dos poemas, do que como efeitos pensados. E todos os poemas estão interligados – Estado Crítico é um livro, não uma coletânea de poemas. Levou cinco anos para ser escrito. Um trabalho muito lento…
J(J)M: Poderia nos falar um pouco mais desse seu livro, Estado Crítico?
RB: Estado Crítico, “condição crítica”… A melhor maneira de falar disso, de pensar nisso, é através do poema:
Estado Crítico
É o sarcófago de uma piranha
É um Tarzan míope
esmiuçando o céu azul
É o nightclub Silêncio
É um pelego: entrega Drummond
como extintor de incêndio
É a tradução de Sá-Carneiro
para o português
É Baudelaire parcelado em doze vezes
É uma babá de baratas
É um Jean Genet tratável
O atravessador passa avestruz
por Rimbaud
É a incrível banheira portátil
do apartamento onde
Maiakóvski se matou
J(J)M: Sim, mas as condições críticas não são necessariamente algo que possa reduzir ou explicar demais. As condições críticas são também condições vitais?
RB: Sim, neste sentido eu concordo! Nunca pensei nisso desse jeito, mas você está certo, condições críticas são também condições vitais.
J(J)M: Sua poesia representa uma porção de coisas diferentes e também entra dentro de uma porção de coisas diferentes… Há um certo aspecto onírico nela, como que uma vertigem…
RB: Sim, talvez seja uma poesia da vertigem…… No poema “Hong Kong”, por exemplo, porque eu não entendi Hong Kong, eu enumero coisas que vi lá, porque era incapaz de sintetizar mais. Então esse tipo de poesia é onírica num sentido vertiginoso, devido ao choque entre o poeta e a rua, a censura que tento registrar em um verso como: “É um túmulo com terraço e vista para o mar” ou “a China liquidando Hong Kong”. Hong Kong tenta manter suas liberdades civis à revelia de Beijing.
Hong Kong
É a eternidade e a sinceridade
na traseira de um ônibus
É o terraço do antigo edifício do Bank of China
à noite
é uma cortina de fog
É o novo Bank of China
acima da linha das luzes, pontiagudo
É um míssil de Beijing
É o monge taoísta a caráter pisando firme
no tapete vermelho do Regency Hyatt
É a água de uma cachoeira caindo na linha do trem
da janela do quarto
a China liquidando Hong Kong
É um mendigo que se automutila e vai à caça de seu income
É um garoto mordendo um cigarro pela manhã
É uma gravata pendurada num cabide
inspired by Italy
É Jobim e Astrud Gilberto num alto-falante
de Lamma Island
É um prato de vagem com carne moída
É uma droga que emagrece macacos obesos
É o design vanguardista da garrafa de Jasmine tea
Cai o prédio velho do mercado de Tung Choi
Street, espinafre d’ água
É um chinês desdentado numa aquarela
É a careca do poeta Yu Jian produzindo
[energia limpa e renovável
no saguão do hotel
É um ataque de budas de neon
É uma dançarina exagerada de tango
É um túmulo com terraço e vista para o mar
É um papagaio da Amazônia num poleiro de ouro
Uma flûte de champagne Perrier-Jouët
É Tin Chan Temple
um Buda gigante
geladeira de coca-colas no abdome
É “Delay no more”
adesivos em Ladies Market
Diu lay ló mo, fuck your mother
É um audi com vidros fumados
É Hermès
A lua cheia, pela metade
É uma nuvem sobre o mar
uma pantera
O sol mais tarde