Não sou muito fã de ópera, mas aconteceu-me, certa vez, de ouvir um programa de rádio dedicado a um célebre tenor dos anos 60, Fritz Wunderlich. O locutor comentava a técnica vocal de Wunderlich, especialmente a facilidade com que ele alcançava as notas agudas. O locutor observava que a maior parte dos cantores parece revelar um esforço de escalada, uma ascensão quase física, quando atinge a nota exigida na partitura. No caso de Fritz Wunderlich, tinha-se a impressão oposta. Parecia que ele já tinha na cabeça, nas cordas vocais, uma nota agudíssima pronta a ser emitida. E, para chegar à nota que de fato devia ser cantada, só lhe bastava “descer” um ou dois degraus. De modo que o som brilhante de sua voz não parecia nascer de uma vitória do diafragma, mas de um relaxamento, de uma “aterrissagem” na nota certa.
A poesia de Régis Bonvicino me causa a mesma impressão. A nota certa, a palavra inesperada, a imagem compacta, parecem “cair” no verso com grande facilidade, como se o poeta colhesse, captasse algo que lhe veio “do alto”. Antigamente, dava-se a isso o nome de inspiração. O nome não importa; melhor dar alguns exemplos desse efeito.
Pego, deste “Céu-Eclipse”, a quinta parte do poema intitulado “171196”. “Talvez tenha morado numa rua chamada Sí Dar. Há uma rua chamada Campeche. Rose e Andy moram com certeza na Cedar Street. Maçãs não significam nada.”
Parece-me espantosa a irrupção dessa frase _”maçãs não significam nada” — que cai no texto, sem explicação. O que íamos lendo era uma anotação nervosa, insegura, como se o autor estivesse em dúvida, rebuscando na memória algum ponto de apoio. E de repente surge aquela frase, que vem de outro lugar, o da certeza poética, abrupta, feliz.
Outro exemplo, no poema “Sem Título” (maio de 97): “sexta, 9 de outubro de 98,/9 de outubro de 99 — /sábado/ e o hino dos dias.”
Este “hino dos dias”, que surge depois dos enunciados da cronologia, diz muito a respeito do jogo poético do autor. É como se a beleza aparecesse de repente, quebrando o cotidiano; a comoção está sempre marcada pelo espanto. Os poemas de Régis Bonvicino parecem ser feitos em função dessa ruptura. Ele é um poeta mais da “escuta” que do “discurso”.
Na contracapa de sua antologia editada em inglês, “Sky-Eclipse: Selected Poems” (editora Sun & Moon), alguém observa que a poesia de Bonvicino “reconhece a serendipity de nossas vidas”. “Serendipity” é uma palavra que surgiu depois de um romance de Horace Walpole, no século 18, significando a faculdade de topar inesperadamente com aquilo que não se estava procurando no momento. Ou seja, o acaso feliz, que independe de qualquer esforço de procura ou de memória.
Seria, de novo, da inspiração poética que falamos? Creio que não descreve os acertos de Régis Bonvicino. Ao contrário, é como se nos seus poemas a inspiração deixasse de ser subjetiva, de ser uma espécie de eleição anímica, mas passasse a ser objetiva, algo que interrompe a fala do poeta e se impõe sem que ele pareça saber o que está acontecendo. Haveria outro termo, de origem religiosa, para tentar explicar o caso: é o de “graça”.
Cito versos de um poema escrito “em estado de graça”: “A primavera veio de véspera/azaléias/ mas azaléias são uma flor do inverno/ deslocados no espaço//São Paulo, Nova York, Santiago/Los Angeles/o vento canta e nada adianta/ nuvens parecerem//ser areia ao longe (…)”.
Já no salto do primeiro para o segundo verso — esse “azaléias” que se impõe aos olhos do leitor —, percebe-se a abertura de Régis para o inesperado, e como ele sabe mimetizar esse inesperado na sintaxe brusca do poema. É como se tudo fosse anotado numa espécie de inconsciência, mas que em nada se assemelha ao transe surrealista. É uma abertura para o contingente, para o circunstancial, para o que surge de alheio às mazelas do mundo.
Poemas de circunstância, então? Várias coisas me levam a duvidar dessa hipótese. A poesia de Régis Bonvicino nada tem de casual; é como se o acaso a estruturasse, em vários níveis. É comum encontrarmos em seus versos, por exemplo, uma tensão entre o substantivo e adjetivo, como que libertando-os de suas funções habituais, como que imantando-os mutuamente. Cito um outro poema.
“O agapanto se lança em janeiro alamanda talvez canto de magnólia branca mil folhas florena esporinha em fevereiro manacá-março o que é flor o que é azul brinco-de-princesa insigne em abril camélia branca de maio íris numa agulha de sol de junho lápis-lazúli lacunas de campânulas embora chamadas de flor rododendro caliandra que se lança jasmim ou miosótis no mês seguinte o que é sépala de outubro fulvo antúrio cinerária jacarandá-mimoso no mês de janeiro e dezembro sálvia a pétala deslocou a parábola a flor secou a fábula.”
Há nesse poema ao mesmo tempo uma celebração do retorno, da regularidade das estações, e uma imitação da velocidade com que tudo escoa. Nesse jogo, adjetivo e substantivo como que colidem: em “e dezembro sálvia a pétala… ”, por exemplo, podemos ler “sálvia” como uma forma de qualificar “dezembro” ou como a pura eclosão visual da planta em dezembro.
E é como se o tema deste livro — o contraste entre a natureza e a vida urbana, o primado das estações do ano contra a temporalidade burocrática do escritório, uma ecologia em pleno asfalto, digamos — fosse encenado nessa sintaxe feita ao mesmo tempo de interrupções e pressa.
O próprio livro, onde determinadas cenas e palavras reaparecem em vários poemas, encena as repetições da natureza. A idéia de repetição, de retorno, por sua vez pode ser entendida como a busca de uma regularidade que, no plano formal, sempre foi característica da poesia tradicional (metro, rima).
Mas é claro que a pura repetição não faz a poesia. O que importa é a consciência de que justamente algo de irrepetível, uma “iluminação”, se deu na experiência do poeta. E por ser irrepetível, cumpre dar-lhe uma regularidade, uma forma. O acaso, o natural, a “naturalidade” de muitos poemas de “Céu-Eclipse” guardam a brevidade dos dias; mas só podem guardá-la porque se organizam para tanto.
Marcelo Coelho