Tiago Ferro
1.
Carlos Guilherme Mota costuma recomendar a amigos que estão indo para fora do país, que ao chegarem ao seu destino, procurem pelos poetas locais. Segundo o historiador das ideias, ouvir os poetas é a melhor forma para se entrar no clima de uma cidade, para medir a temperatura local.
Se procurarmos os poemas do livro Estado crítico, de Régis Bonvicino, com qual sociedade entraremos em contato?
O autor viaja pelo mundo. Atravessa oceanos num mesmo poema. Passa por São Paulo, Santiago, Valparaíso, Nova York, Barcelona, Londres, Paris, Macau e Hong Kong.
Charles Bernstein o classifica como “uma espécie de flâneur do século XXI”.
Mas afinal, de qual sociedade nos fala o poeta-flâneur?
Ao percorrer cidades – algumas delas sem qualquer relação histórica direta mais óbvia –, recolhendo material para compor seus poemas, Bonvicino sugere algo no que toca à homogeneização da experiência urbano mundial; estamos em um mundo das redes, a rede é o local. Esse é o primeiro ponto que o distingue da figura do flâneur tradicional (e também sugere implicitamente o alargamento das fronteiras da poesia brasileira); os andarilhos de Baudelaire ou de Flaubert, estavam sempre inseridos numa mesma realidade local, com características bastante definidas. Nos parece difícil imaginar que Frédéric, o herói de A educação sentimental, imaginasse caminhar tendo seus deliciosos insights por alguma cidade latino-americana. Nascido com o romance e com todas as promessas que as grandes cidades fermentavam, se o flâneur encontrava contradições na criação desse novo espaço público, não o negava como centro para resolução de conflitos e motor criador de um futuro por vir. Lembremos que até o trauma de 1848, tema do já mencionado romance de Flaubert, havia na Europa um forte caldo cultural de utopias românticas. E todos esses impulsos político-estéticos eram catalisados pela vida nas grandes metrópoles.
Bonvicino percorre o mundo. A familiaridade com as diversas cidades não é a mesma, mas em todas elas ele encontra, sob diversas formas de mascaramento ideológico, os efeitos destruidores do capitalismo neoliberal. A tarefa é complexa. Segundo Mota: “O tamanho do problema tornou-se incomensurável, e a globalização que se acentua a cada dia nos coloca em situações ainda não bem avaliadas. Mas não são poucos os exemplos de quem enfrenta os desafios, inclusive nas periferias”. Em Estado critico o problema é enfrentado.
No poema Hong Kong, por exemplo, tradição e modernidade se misturam em temporalidades contraditórias que acabam por explodir em ironia: “É a eternidade e a sinceridade/ na traseira de um ônibus/ É o terraço do antigo edifício do Bank of China/ à noite”. Já em Paris, Barcelona, as imagens recolhidas estão mais próximas da realidade paulistana (marco-zero simbólico do livro): “Um mendigo/ sob o anúncio do Crédito Mútuo/ deitado, quieto/ como uma flor de túmulo”.
Outra diferença desse flâneur da era pós-industrial é que ele não consegue articular significados para o futuro. O poeta percorre metrópoles recolhendo material numa velocidade desconhecida dos escritores da belle époque. E tudo que é recolhido vai sendo empilhado num eterno presente.
2.
Ao investigar as cidades por onde passa, Bonvicino registra instantâneos da vida nas metrópoles e os arranja como em um álbum de fotografias. E, assim como em um álbum, as imagens recolhidas não se articulam entre si através de nenhum artifício linguístico. A disposição desses instantâneos, sempre com imagens que se chocam, cria o fio condutor do livro.
Também como fotografias, as imagens recolhidas em poemas, não permitem comentários contextualizadores (legendas) ou qualquer tipo de julgamento moral. Outra característica dessa opção formal é a presentificação dura do material recolhido. Cada imagem entra em choque com a seguinte sem gerar o novo, mas problematizando o entendimento da realidade.
3.
Algumas imagens são recorrentes no álbum do poeta. A figura do mendigo aparece reiteradamente para questionar o consumo de luxo. O uso de elementos específicos do consumo, como marcas de bolsas e modelos de carro – Hermès, Burberry, etc –, aumentam a tensão ao serem contrapostos ao homem lixo anônimo. (Sem contar certo estranhamento causado por conta da dissolução das fronteiras entre consumo e arte ao inserir produtos e suas marcas no tecido poético.) Os produtos têm identidades bastante definidas, com características únicas, apesar de serem produzidos em série. Já os indivíduos indesejados do capitalismo global são massa de carne amorfa. Não carregam as marcas que os definiriam. Por isso são apenas “um mendigo”. Uma cena magistral desse choque é a do fumante de crack hipnotizado pelo cartaz publicitário no poema Chama acesa: “através dos vidros/ a fumaça arde nos olhos/ um ônibus lança água da poça/ numa esquina, te quero nua/ de joelhos diz o noia à garota/ seios grandes, esguia/ exposta no cartaz/ de sutiã e calcinha”.
4.
Mas o melhor do livro, e de certa forma o centro crítico da obra, está nos poemas de Santiago do Chile. Cidade exemplo, para os latino americanos, da felicidade prometida pelo capitalismo global, ali o poeta encontra a repetição de um mundo prestes a entrar em colapso. Ao escolher a capital chilena para inventariar seus registros, Bonvicino arrasa de uma vez por todas a desonesta confusão entre modernidade e capitalismo. E ainda mais, ao se recusar a identificar a barbárie e portanto negando a ideia oposta, a saber, a civilização, deixa no ar a dúvida se o projeto todo da modernidade, com suas bandeiras de emancipação do homem, não teria sido mera armação ideológica.
O poema central do livro é Mapocho:
Água lamacenta do degelo dos Andes
cruza Santiago,
na altura do Museo de Bellas Artes
arbustos, tenkas voam entre flores
dizem que o rio está poluído
pelos rejeitos das minas de cobre
a água corre lenta
“Por favor,
no me pongas la venda,
mátame de frente”
aqui
Joan Alsina, o padre operário,
foi metralhado
pela tropa de Pinochet
caiu direto no meio do barro
na noite do golpe
diz agora um amigo chileno
há um projeto para salvar o rio
um turista de Los Angeles
me sugere uma visita
ao Cementerio General
“hay que visitarlo”
os túmulos
são muito bem decorados
aqui
nesta manhã seca de janeiro
há um cachorro morto,
plásticos,
um fusível
queimado no poste,
e um pneu, como o outdoor,
ao ar livre.
A água lamacenta do degelo dos Andes passa em frente ao museu de belas artes no ponto onde anos atrás a ditadura feroz de Pinochet fuzilava seus inimigos. De frente a tudo isso, o turista só enxerga curiosidades aonde deveria lamentar pela história. Os choques mais fortes estão todos reunidos nesse poema, concentrados de forma magistral.
5.
Outra figura bem registrada nessas cidades em estado crítico é a do turista. Espécie de anti-flâneur, percorre os mesmos caminhos deste, mas sem tentar desvendar a máquina do mundo. O turista olha apenas para onde lhe mandam olhar; a realidade das cidades é o decalque da última edição do guia Michelin. O mundo para ele é uma enorme Disneyland. E o consumo de souvenires a finalidade última de suas andanças. O turista é o produto final melhor elaborado pela sociedade de consumo. Ele compra sem culpa, para ele tudo é diversão. O presente é estável e nunca deve mudar.
6.
Se Bonvicino ataca com força o estado crítico de nossa sociedade global, não poderia deixar de fora a produção cultural. Respirando por aparelhos, quando crítica, ou, transformada em passatempos encontrados pelas redes sociais mundiais, a estética não tem mais força política para percorrer as áreas obscuras da sociedade. “Damien/ vá se foder”. A arte também patina sob o sol do presente hiperconsumista. Museus ou imagens sacras não são mais importantes do que shopping centers. “É Baudelaire parcelado em 12 vezes”, anota o poeta. O mundo foi reelaborado pelo consumo para se transformar num grande parque temático ideológico ao qual o autor opõe sua poesia criando curtos circuitos na estrutura.
Na era da hiperconectividade cibernética, poemas são entregues como spams.
7.
Poderíamos afirmar que a repetição da imagem do mendigo, o escapismo de alguns poemas do eixo central para a ironia e a tentativa de chocar o leitor, seriam fraquezas do livro. No entanto, esses três momentos, atestam a força do conjunto e a autenticidade do poeta. A obra passa assim para o lado de lá e torna-se objeto histórico. Testemunho de uma época.
As três supostas fraquezas seriam na verdade tentativas de acelerar a história, superar a realidade: Bonvicino não a camufla com subjetividades edulcorantes. É poeta do aqui e agora e, mais do que nunca, está com os pés no chão da realidade mais dura.
Repetir para saturar os leitores a respeito da dureza e inviabilidade da atual situação das sociedades é a primeira estratégia. Escapar através da ironia, o momento de fuga necessário. E, agredir o leitor, a tentativa mais flagrante de um projeto fadado ao fracasso, mas que tem que seguir em frente.
Nome central da poesia brasileira moderna e crítico dos mais bem equipados, Bonvicino nunca cairia nessas armadilhas facilmente apontadas acima. A repetição é o cerne da cultura contemporânea. Nada deve mudar, é o fim da história, é o que preconiza o capital através de seus ideólogos. A ironia é auto-derrisória e portanto incapaz de aglutinar ideias transformadoras. E o tratamento de choque com o leitor seria a saída mais infeliz; afinal, até a imagem símbolo da guerrilha, a efígie de Che Guevara, foi parar repetidamente multicolorida em biquínis nas bundas de modelos esquálidas em passarelas da moda.
As batalhas fadadas ao fracasso parecem se infiltrar pelo tecido poético da obra para piscar durante toda a leitura do livro, como um sinal de alerta. E finalmente encontramos os comentários para as fotos do álbum do poeta: não como legendas logo abaixo das imagens, mas sim como alertas escritos nos versos delas. Só quem ler os poemas a contrapelo, os conhecerá.
8. Algo em nós muda após a leitura de Estado crítico. O narrador de Em busca do tempo perdido afirma:
“… eis que então ele [o livro] desencadeia em nós, durante uma hora, todas as venturas e todas as desgraças possíveis, algumas das quais levaríamos anos para conhecer na vida, e outras, as mais intensas entre elas, jamais nos seriam reveladas, pois a lentidão com que se processam nos impede de as perceber (assim muda nosso coração, na vida, e esta é a mais amarga das dores, mas é uma dor que só conhecemos pela leitura, em imaginação).”
Estado crítico resgata a tradição, hoje tão enfraquecida, da arte crítica e portanto se coloca como livro ímpar em relação a boa parte da produção contemporânea.
9.
Ao procurarmos os poemas de Régis Bonvicino em Estado crítico, encontramos a realidade respirando por aparelhos, convulsionada pelo capitalismo globalizado deste início de século XXI. Mas a poesia é artifício. A arte (crítica) carrega os germes do futuro. Quem sabe partindo dessa consciência de Bonvicino, não comecemos a vislumbrar novos significados que nos ajudem a escapar do sol podre do eterno presente.
Tiago Ferro é pesquisador do departamento de história da FFLCH-USP.