Este não é apenas o ano do centenário de nascimento de Cecília Meireles. É, também, o ano do centenário de nascimento de uma outra grande poetisa, bem mais imerecidamente esquecida : Henriqueta Lisboa. Lisboa nasceu em Lambari, Minas Gerais, em 25 de junho de 1901 e morreu em 9 de outubro de 1985. Estreou em 1929, quando se encerrava a década de maior invenção nas artes brasileiras, com “Enternecimento” . Seu último volume publicado em vida foi “Casa de pedra: poemas escolhidos”, em 1979. Publicou cerca de vinte livros, ao longo de sua carreira. Foi o primeiro autor a escrever poesia para crianças no Brasil. Alfredo Bosi esclarece, em “História concisa da Literatura Brasileira”, sua situação no quadro dos anos de 1930/1950: ” De um modo geral, porém, pode-se reconhecer, nos poetas que se firmaram depois da fase heróica do modernismo, a conquista de dimensões temáticas novas: a política em Drummond e em Murilo Mendes ; a religiosa, no mesmo Murilo, em Jorge de Lima e em Cecília Mereiles. E não só: também se impõe a busca de uma linguagem essencial, afim às experiências metafísicas de um certo veio rilkeano, que se reconhece em, entre outros, Henriqueta Lisboa …”.
É, portanto, mais do que oportuno o lançamento deste “Melhores Poemas”, de Henriqueta Lisboa, com boa seleção de Fábio Lucas, que observa corretamente em sua introdução: ” … a poesia de Henriqueta pode ser lida como o estuário de duas tendências: a simbolista e a modernista …”. Consiste, a meu ver, justamente, na fusão de elementos destes dois movimentos – um léxico sobretudo simbolista, que torna mais complexa e contundente a sintaxe despojada do primeiro modernismo – a originalidade desta poetisa, que se fosse norte-americana teria sido, com certeza, revalorizada e cultuada pelos Language Poets ( década de 80), como uma Laura Riding ou até mesmo, guardadas as devidas distâncias, como uma Gertrude Stein. Sim, Henriqueta enfrentou igualmente o tema da rosa tautológica, da rosa/coisa, ao escrever, num peça intitulada ‘Da espécie’: ” … A rosa atrai a rosa / Por enredos e meandros / de essência. / A áurea rosa / a fulva, a rubra, / na expectativa da mais pura. / E são vergéis convergindo / para abertas campinas / na milenar procura…”.
A escritura de Lisboa está, de fato, voltada para a busca de uma “essência” da palavra, o que faz por meio da explicitação contínua de sua materialidade, de sua tatilidade. Por exemplo, ao tratar de um tema abstrato, como a hipocrisia, assim a define: ” … É um gato / contornando porcelanas….”. Ou ao cuidar da inóspita questão da profecia, no belíssimo poema ‘Sibila’: ” Agora é a vez da Sibila. / Ela não tem voz e canta. / É rouca mas canta. / Muda, haveria de cantar. / Canta com os nervos / com os músculos / com todo o corpo / até com os cabelos …”. É como se, por meio do poema, Henriqueta quisesse apalpar a sílfede, que está para se evaporar. O verso “até com os cabelos” tem essa função de ênfase, em relação à palavra “sibila”, que acaba por existir.
A linguagem da literatura é, como ensina Hertbert Marcuse, uma metalinguagem, na medida em que não pertence ao universo estabelecido do discurso que transmite o estado de coisas existente; na medida em que transmite um ‘outro mundo’, que obedece a outros critérios, valores e princípios, como negação das realidades prontas, dadas. A obra de Lisboa é, neste sentido, uma das mais radicais do cenário brasileiro, ao romper profundamente com os “universos estabelecidos dos discursos”. Rompeu com o próprio “canon” modernista, ao fazê-lo mais denso, do ponto de vista sintático e léxico ; rompeu com o seu próprio tempo latu sensu ao se revelar até hoje atualíssima, na simplicidade de um verso como “Uma cigarra vale pouco / para quem tem ouvido mouco” ou na contundência de um pequeno poema como ‘Calendário’: “Calada floração / fictícia / caindo da árvore / dos dias”.
PARÁBOLA
Do funil dos olhos
Em áscuas – o azul.
Da risada estrídula
Ao rubor – o rubro.
Do vômito em jorro
Que verde – no vácuo.
Da calúnia acéfala
— o amarelo esgar.
Da injustiça em peso
— o roxo tombo.
Do suco dos gomos
no tonel das iras
multimatizadas
— a suscinta cólera
em rolo de plexos
a rolar declives
— a neve na bola
cada vez mais álgida
— a bola de neve
cada vez mais límpida
Régis Bonvicino