GUY BENNETT
especial para a Folha
Régis Bonvicino no centro, Michael Palmer à direita, Los Angeles, 1996
A antologia bilíngue “Nothing the Sun Could Not Explain” reúne três gerações de poetas cujos trabalhos refletem as principais tendências da poesia brasileira nos últimos 30 anos.
Começando com trabalhos do movimento tropicalista dos anos 60 e prosseguindo através da poesia atual, os editores Michael Palmer, Régis Bonvicino e Nelson Ascher seguem a trajetória da poesia contemporânea.
Em comparação com a poesia concreta, austera e frequentemente impessoal, que dominava a cena brasileira nos anos 50, a “poética” aqui apresentada é contundentemente pessoal e familiar.
Ela se distancia da investigação visual e formal do concretismo, enfocando, ao contrário, um tipo de lírica.
Salvo duas peças visuais, que parecem estranhamente fora de lugar neste contexto, a antologia caracteriza-se por uma exploração radical da forma de verso curto.
Embora o verso curto seja, aqui, de fato, a unidade poética básica, o trabalho é surpreendentemente diversificado, graças à cuidadosa experimentação por parte de muitos dos poetas.
Das construções verbais compactas de Paulo Leminski às peças expansivas de Josely Vianna Baptista e às linhas alongadas e quebradas de Waly Salomão, muitas vozes distintas podem ser ouvidas, criando uma polifonia que enriquece toda a coleção.
Enquanto várias abordagens são evidentes, estilística e tematicamente, a poesia parece gravitar em torno de dois pólos: por um lado, o da poesia direta e coloquial, muitas vezes marcada por fortes tendências antiestéticas; por outro lado, uma poesia introspectiva, consciente de si, que, com frequência, examina questões da língua e da escrita, e, ao fazê-lo, dialoga em sentido amplo com outras culturas.
O primeiro modo, típico tanto do tropicalismo, quanto das poéticas “marginais” dos anos 60 e 70, é exemplificado pelo trabalho de vários poetas, notadamente Torquato Neto, Paulo Leminski e Ana Cristina César.
Esses compartilham o gosto pelo familiar e cotidiano, por uma linguagem informal, ressoando um inventivo “ethos urbano”.
Talvez sob a influência da música popular brasileira, seus poemas, muitas vezes, parecem canções de amor que não funcionaram -marcados como são pelo pessimismo subjacente e sentido de desespero, como neste poema de Ana Cristina César: “é muito claro/ amor/ bateu/ para ficar/ nesta varanda descoberta/ a anoitecer sobre a cidade/ em construção/ sobre a pequena constrição/ no teu peito/ angústia de felicidade/ luzes de automóveis/ riscando o tempo/ canteiros de obras/ em repouso/ recuo súbito da trama”.
Nas mãos de Leminski, um dos poetas mais fortes aqui apresentados, essas “linhas frágeis” colapsam em si mesmas, adquirindo uma intensidade, e, por vezes, uma brutalidade, que é atenuada apenas por breves flashes de humor e ironia autodepreciativa.
Um sarcasmo que não perdoa, sentido em boa parte do trabalho, tem seu campeão em Leminski.
Embora ele tenha começado escrevendo poesia concreta (1960), rapidamente ele criou um estilo bastante pessoal, temperado pela contracultura que, crescentemente, moldou a ele e seu trabalho. Uma voz forte, original, ele se move da concisão do haicai (“lua à vista/ brilhavas assim/ sobre Auschwitz?”) às composições de sabor retórico que beiram o silogismo, como a peça da qual a antologia retira seu nome: “nada que o sol/ não explique/ tudo que a lua/ mais chique/ não tem chuva/ que desbote esta flor”.
Ou, o seguinte poema, ainda mais potente: “um dia/ a gente ia ser Homero/ a obra nada menos que uma Ilíada/ depois/ a barra pesando/ dava pra ser aí um Rimbaud/ um Ungaretti um Fernando Pessoa qualquer/ um Lorca um Éluard um Ginsberg/ por fim/ acabamos o pequeno poeta da província/ que sempre fomos/ por trás de tantas máscaras/ que o tempo tratou como as flores”.
Em contraponto a essa poesia de “tom” autodegradante, autodestrutiva, sem sentido pejorativo, soa uma segunda voz, atenta ao seu status de fato literário e de seu lugar dentro de um contexto mais amplo da cena internacional.
Como muitos dos poetas aqui são tradutores (Nelson Ascher, Régis Bonvicino, Duda Machado, Júlio Castañon Guimarães e Josely Vianna Baptista), seus trabalhos refletem, nesse ângulo, o mundo em que vivem. Por toda a antologia escutavam-se ecos de Mallarmé (“Nada, esta espuma”, de Ana Cristina César), Lorca (“Verdura”, de Paulo Leminski), Rimbaud (“Teatro Ambulante”, de Duda Machado), entre outros.
Frequentes alusões a mais outros escritores e artistas plásticos -como em “A desordem de”, Régis Bonvicino, (“…Pábulo de vermes Picasso/ colecionava picuá de barro/ decorado com cabra…”)- servem como “hiperligações” a uma rede vasta e multicultural, conectando a poesia brasileira às várias literaturas “estrangeiras”.
Não quero dar a impressão que a poesia brasileira, como representada nesta antologia, é desesperançosamente morosa ou imperturbavelmente cínica.
Ao contrário, há uma inegável exuberância nos trabalhos, um frescor e vibração que ressoam por toda parte, embora temperada, por vezes, com mordaz ironia.
Curiosamente, essa exuberância está melhor expressa, de meu ponto de vista, em poemas reflexivos, tipo “natureza-morta”, aqueles que exploram um espaço fechado, íntimo, no qual celebram a alegria potencial -se frágil e transitória- do momento em mãos.
Essas peças são frequentemente caracterizados por sua forte sensualidade que parece transpirar das imagens, tomando o poema e o leitor. Elas variam de abertamente sexuais, “o que se perdeu?”, de Júlio Castañon Guimarães e “Máquinas”, de Nelson Ascher, a um erotismo indeterminado de “castanhas, mulheres”, de Claudia Roquette-Pinto: “se abertas/ com a destra surpresa/ de pequenas mãos/ cegas a tal alfabeto/ e a nesga -já marron/ de pele fere/ mais que a tolice dos espinhos/ vê como/ o gomo lateja:/ ela e ela/ desabotoa/ entre os dedos”. A exuberância dessas linhas, unidas com o brilho fugaz, sensual das imagens -qualidades comuns a muitos dos poemas presentes a “Nothing The Sun Could Not Explain”- revela ainda um outro aspecto da poesia contemporânea brasileira que não poderia deixar de ser mencionado: o de uma escritura intensamente bonita e mentalmente táctil, que “desabotoa entre os dedos” do leitor atento.
Livro: Nothing the Sun Could Not Explain
Organização: Michael Palmer, Régis Bonvicino e Nelson Ascher
Lançamento: Sun & Moon Press
Quanto: US$ 15.95 (312 páginas)
Onde encomendar – Livraria Cultura: av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033 ou na Internet, na Amazon Books (www.amazon.com)
Guy Bennett é poeta, tradutor, músico, autor de “Last Words” (Sun & Moon Press) e diretor da coleção “Seeing Eyes Books”
Tradução Claudia Miranda Gonçalves