Em Remorso do Cosmos (de ter vindo ao sol), de Régis Bonvicino, predominam os versos curtos, mas estão contrapostos a outros maiores, de número variável de sílabas, e mesmo a blocos sintagmáticos encadeados que ocupam uma página inteira. Em qualquer extensão, contudo, os versos são conduzidos pela aliteração e pelo ritmo (crótalos para cobras; canalha densamente canina), como se guizos ou alarmes acompanhassem as palavras. Algumas vezes, as palavras são distribuídas admiravelmente por esquemas de proporção e de atribuição, não pela sintaxe da frase (estacas para mônadas; atalho para alado; Sol para magnólia). Outras vezes, taxonomias e descrições enumerativas articulam-se às relações discursivas (a semente é lenha, a semente é fogo, a semente é vermelha, cinza, nas terras úmidas do Pará, é estrela). Há ainda uma prática original da tradução; por exemplo, justapondo-se linearmente um poema e sua tradução, de modo que esta não mais traduza, mas entre em fricção com a primeira língua. Ademais, ocorre igualmente a tradução de fragmentos traduzidos (Decantando, de Charles Bernstein) para um novo poema, de modo que a própria idéia de autoria, de um poeta ou outro, parece inaplicável. Neste mesmo poema, obtém-se um notável efeito de recorte e rearranjo de objetos incongruentes (um gráfico um pistão um arranjo de um jarro), seja no espaço apontado pelo dêitico (um grumo daqui garoupa colocando, daqui pistão), seja na sucessão do tempo da conjugação (eu coloquei o jarro na mesa, colocando o jarro na mesa, estava colocando o jarro na mesa). À vasta exploração de recursos não discursivos de construção da frase não corresponde, entretanto, nenhum tédio pelos acontecimentos históricos. Ao contrário, o alarme da língua é também uma estridência do mundo. São referidos, por exemplo, o assassinato de um manifestante anti-globalização, vazamentos de petróleo, grandes corporações etc. A estridência é, portanto, política, e produz ressonâncias por todo o livro, mesmo em ecfrases de movimentos rápidos e circunstâncias ínfimas (um cão, de passagem, rói um osso; o gerânio brota da parede; melro corrói cabeça). Mas o principal risco empreendido por Remorso do Cosmos é mesmo o emprego de palavras belas, preciosas, em geral tão imprestáveis para a poesia de invenção, quanto buscada pela poesia vulgar, decorativa. Produz-se então uma liga surpreendente entre os belos nomes das flores e os afetos de ira e temor, de modo que as novas correspondências digam respeito a um idioma dos medos e não dos ornatos. Código apocalíptico, pânico latente, desastre iminente cifram-se nas cores, sons e plantas ornamentais (flores exalam medo; apavorada de begônia; crisântemo em pânico; o veneno de acônitos; folhas de sangue), bem como em todo tipo de objeto ou animal (avelórios cortando os dedos a cada conta; borboletas fogem para os abrigos; ninho de guinchos; orquídeas em vigília). Evidencia-se, pois, um cosmos em estado de belicosa calamidade (satélites saindo de órbita; tateava um morteiro; horizonte e cápsulas). Mesmo o ambiente doméstico é ameaçador (serviram-me veneno à mesa), e determinado por automatismos tacanhos (jardim de formiga; pegar cigarros no maço/ levar o garfo à boca/ ir e vir etc). A rigor, toda a cena de Remorso do Cosmos é persecutória (rede como radar e lâmina), insone (decapitava um sonho), travada por limites rígidos e opressivos (tentava seguir; tentava entender; entre grades; além do muro). No avesso de um locus amoenus, constrói-se minuciosamente um pavor linfático e paranóico que contamina e destrói qualquer possibilidade de epifania — linguajeira ou outra.
Alcir Pécora (Professor Livre Docente da universidade Estadual de Campinas – UNICAMP e crítico literário).
Trecho publicado no Caderno Mais!, Folha de S. Paulo, janeiro de 2004.