O relançamento de “A Querela do Brasil”, de Carlos Zilio, quinze anos depois, o afirma como imprescindível para a compreensão não só das artes plásticas mas de toda a cultura brasileira, que se formou a partir do Modernsimo de 1922. O volume desvenda tópicos que permanecem pouco trabalhados.Por que a poesia norte-americana é hoje das mais fortes do mundo? Zilio, enfocando artes plásticas, ensina que artistas americanos conseguiram — por meio de síntese original — com o Expressionismo Abstrato, se emancipar dos modelos franceses e criar contribuição própria, ”constituindo um pólo dinâmico internacional” .Esta informação, confrontada com a de que poetas se relacionavam com pintores, responde à questão.
Questão central do livro, que tem como objeto o Modernismo de 1922 — a geração que inaugurou a tradição da arte de uma maneira, segundo obervação correta do ensaista, ”mais definitiva no Brasil” e que refletiu em torno de uma possível conceituação de “arte brasileira,apresentando uma imagem distinta da européia”. ”A Querela do Brasil” vai desvelando avanços, recuos e hesitações do projeto modernista, a partir dos percursos de Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Candido Portinari. O autor se vale do conceito de “Pós-cubismo” ( Clement Greenberg ), que inclui figuração e abstração, vínculo do plano da pintura com o da tela, para avaliar tais percursos, examinando, no contexto, a Semana de 1922, a exposição de Anita Malffati de 1917 e a gestação dos movimentos Pau-Brasil ( 1924 ) e Antropofágico ( 1928 ) — produtos da união de Tarsila com Oswald de Andrade, que se casaram em 1922. Para entender a proposta do Modernismo, Zilio trata da gradativa ruptura com a Renascença,que se iniciou com o Romantismo e Realismo ( cotidiano na tela ) e se radicalizou com Cézanne, que libertou a cor do compromisso com a representação e com a perspectiva. Começa o autor anontando que o Modernismo afirmou-se sem ter experimentado a radicalidade do Impressionismo ( Cézanne ) — indo direto ao diálogo com Léger e Glaizes ( Tarsila ) e com o Picasso do “retorno à ordem” ( Di e Portinari ). Zilio aponta — ao cotejar “A Negra”, óleo sobre tela, 1923,de Tarsila,com o posterior “A negra”, mármore, 1923 também, de Brancusi — que se para o europeu o primitivismo representava possibilidade de quebra com a tradição greco-romana, para Tarsila e Oswald, ele representou a adoção de especificidade própria à nossa cultura. Com o Modernismo, a arte sistematiza uma posição em relação à cultura brasileira pela primeira vez, e a paisagem, com o homem, representa a possibilidade metafórica de sua visão na tela. Léger e suas máquinas seriam vertidos por Tarsila, num primeiro passo, como posibilidade de leitura do Brasil, a partir da ótica de sua industrialização, no embate campo/cidade. O trabalho prossegue enfocando o segundo momento modernista, esquerdizante sobretudo com Di e Portinari, ”tradutores” em parte mal sucedidos do Picasso clássico e do muralismo mexicano. “A Querela do Brasil” é desses livros que conseguem reunir, para análises e conclusões, aspectos históricos, políticos ( a relação entre Estado e arte no Brasil ) e artísticos. Com clareza e refinamento, inclui-se no rol dos obrigatórios a exemplo de um “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda.
Régis Bonvicino, 1996