Michael Palmer / Régis Bonvicino
poemas, traduções, diálogos
PREFÁCIO
Marjorie Perloff
Neste livro fascinante, Régis Bonvicino oferece-nos traduções de e diálogos com o brilhante e difícil poeta norte-americano de vanguarda Michael Palmer. At Passages (1995) e The Promises of Glass (2000) representam um grande desafio para o tradutor: sua sobressaltante imagética de sonhos, combinada com uma extraordinária clareza e rigor filosófico, suas lentas, meditativas frases de verso livre, muitas vezes dispostas em unidades de duas ou três linhas, não são fáceis de serem replicadas em português — ou, na verdade, em qualquer outra língua. Mas Bonvicino e Palmer compartilham várias coisas: ambos são poetas pós-concretos — poetas da condensação, da narração incompleta, conscientes do “olhar” do poema na página mesmo quando silêncio é um elemento central numa determinada estrutura sonora de uma peça. Assim, quando Palmer escreve em “Six Hermetics Songs 4”:
There were nine grand pianos in my father’s house
one a water object in my head
and one a ship of glassone an eye on the end of a branch
and one a paint-pot spilling red
There were live fandangos in the father’s house
captura a “necessidade” e a supresa que — na presença de objetos de sonho que cataloga, especialmente naquele “eye on the end of a branch” — alguma coisa no “fandango corriqueiro” deve transformar-se.
Mas Bonvicino, fiel tradutor de Palmer que é, tem, ao cabo, uma sensibilidade muito diferente da dele. “Yes, I was born in the street known as Glass” inicia a bem conhecida “Autobiografia 3”, um poema que comunica a impossibilidade de nunca se conhecer o passado de alguém, nunca se ser capaz de definir o que de fato aconteceu. No primeiro diálogo da segunda parte deste volume, Bonvicino responde, insurgente :” Nunca morei numa rua chamada Vidro. E prossegue: “ Chutei uma vez paralelepípedos. Cada dia passava como se num espelho — de ecos. Telefones, fios. Uma vez andei de barco num lago …”. O tom aqui é irônico, jocoso — menos hipnótico e metafísico do que em Palmer.
O “jogo” entre os dois poetas traz também outras vozes. “Sem ruído algum de sílabas”, por exemplo, reproduz “Une Méthode Descriptive”, de Claude Royet-Journoud, que é citado na “Autobiografia 8”, como parte de uma conversação dantesca entre dois filósofos-poetas a respeito da natureza da existência. Tais diálogos, por seu turno, são ampliados por entrevistas feitas por Bonvicino com o próprio Palmer e com Charles Bernstein. Um contexto rico é, assim, fornecido para o entendimento das elaboradas seqüências líricas de Palmer.
Não há — como sabemos — suficiente diálogo entre América do Norte e América do Sul. Os escritores norte-americanos e seus críticos tendem a pensar o Brasil como basicamente o lugar onde Elisabeth Bishop morou e escreveu no período final de sua vida. E, em anos recentes, alguns de nossos mais convencionais poetas “seguiram” esta “rota de peregrinação” para visitar sua casa em Ouro Preto. Mas certa tradição poética brasileira, a mais viva, a de Mário de Andrade, de Paulicéia Desvairada, a de Oswald de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, para mencionar apenas os modernistas, ocorre-me como tendo muito menos em comum com os poemas realísticos e “pacientes” de Bishop do que com a força desconstrutivista, intensamente carregada de lírica, da poesia de Palmer — uma lírica onde as palavras estão ao alcance do leitor mas nunca tão explícitas; de novo e de novo, elas se esfiapam ante nossos olhos. A poesia de Bonvicino coloca também o “significado” em xeque, mas, seus próprios poemas são mais irônicos e exuberantes, mais apegados às coisas do dia-a-dia, do que os de Palmer. Deste modo, os poemas e a poética de Régis põe os “mistérios de construção” da poesia de Palmer (frase de John Ashbery) em alto-relevo. É um delicado e adorável equilíbrio.
Los Angeles, 2 de fevereiro de 2001.
CADENCIANDO-UM-NING, UM SAMBA, PARA O OUTRO
Embora, como reafirma Carolina Nabuco — autora de Retrato dos Estados Unidos à luz da sua Literatura 1 — “o estrangeiro seja a posteridade”, adotei como título deste volume um dos versos do poema “Autobiografia 14”, de Michael Palmer, no qual ele “relata” sua visita, de uma semana, a São Paulo, em maio de 1997: “The animal alphabet / passed overhead / with his twenty-three wings / rhythm-a-ning, a samba for the dead”. Quando li o poema, então inédito, há cerca de quatro anos, veio-me à cabeça a letra de “Na cadência do samba”, de Ataulfo Alves e Paulo Gesta: “Quero morrer numa batucada de bamba / na cadência bonita do samba”. A palavra ning pertence, contou-me Michael, ao vocabulário de Thelonious Monk. Pareceu-me natural e representivo o título “Cadenciando-um-ning, um samba, para o outro” ainda mais quando penso que este trabalho não é de “tradução”. Vejo-o sobretudo como diálogo, de riscos mútuos. Originais e traduções feitos quase simultaneamente. Por isso, decidi “traduzir” (sem aspirar nunca aos resultados brilhantes de um Augusto de Campos ou de um Boris Schnaiderman) exclusivamente os poemas escritos a partir de At Passages, lançado em 1995, época em que nos conhecemos e começamos a conversar. Fica a recomendação para que alguém trabalhe com “Sun”, longo poema, de 1988. Presto, igualmente, com este título, homenagem a Caetano Veloso, autor de “Desde que o samba é samba”, de 1993, um dos últimos clássicos do gênero, no Brasil. E de “Sampa” (samba). Não poderia deixar de me lembrar, falando em Ataulfo, que ele foi um inovador: talvez o primeiro compositor a ousar interpretar suas próprias canções, nos anos 30.
Em “Autobiografia 14”, há homenagens, com afeto & humor, feitas por Michael a autores brasileiros. A maior delas a Mário de Andrade. O verso “We saw: the shorn locks of a nun”, entre outros exemplos, foi, literalmente, retirado de suas leituras da tradução para o inglês de Paulicéia Desvairada, especificamente do poema “Tristura”: “Pobres cabelos cortados de nossa monja”. “Animal alfabeto” é um verso de um poema de Leminski, que Palmer verteu para o inglês. O “Professor de Tudo” é Nelson Ascher, que, ao longo dos dias, explicava-lhe tudo, a respeito de tudo. Em “we saw / a rock star without his rock” refere-se à presença e à participação de Arnaldo Antunes na leitura conjunta do lançamento de Nothing the sun could not explain/ 20 Contemporary Brazilian Poets 2, na Escola Logos, nesta “hallucinated city”. “Professor de Nada” desgina talvez não só o meu silêncio, por ocasião dos passeios pela cidade, com ele e Douglas Messerli. A poesia de Michael é polifônica, à maneira de um “sampler”. Por isso, o leitor vai encontrar, neste volume, poemas de e entrevistas com outros autores, que dizem respeito tanto a ele quanto a mim. O autor de The Promises of Glass, embora respeitado, não é poeta consagrado, como John Ashbery ou “oficiais” como Jorie Graham. Há intelectuais como Mark Strand com quem estive, em novembro de 2000, em Chicago, que o considera “um monstrengo”. Poderia, de minha parte, ter trabalhado com outros como Susan Howe, Lyn Hejinian, Steve McCaffery ou Charles Bernstein. Aliás, a “poética” de Palmer — que não é um L=a=n=g=a=g=u=e poet — ganha quando lida à luz deste movimento, iniciado em torno de 1980 e já extinto. O sinal gráfico de igual (=), entre as letras, no logotipo, queria expressar a idéia política de solidariedade.
Carolina Nabuco ensina, no livro já mencionado, que, desde o século XIX, a literatura norte-americana, amadurecida, já havia se internacionalizado: “A admiração despertada por Poe na França (em Mallarmé e Baudelaire), a fama de Emerson, que Carlyle revelou à Inglaterra, a sensação que o romance de Hawthorne, The Scarlet Letter, produziu em toda a Europa e a atração dos poemas de Longfellow para os leitores do Velho Mundo vieram completar a fusão da literatura americana com a universal.”. As trocas intelectuais entre Estados Unidos e Brasil, alerta a filha de Joaquim Nabuco (primeiro embaixador do Brasil em Washington) inciaram-se há muito: “Inspirado por Cooper, José de Alencar daria incremento às florestas do Brasil. A seu índio Peri daria o mesmo gênero de heroísmo, as mesmas qualidades de alma e corpo, os mesmos feitios físicos de super-homem que Cooper dera aos seus heróis.”. Estes “diálogos” adquiriram, penso, outro timbre, independente, mais inventivo e nítido, a partir principalmente do modernismo de 1922, das teorias antropofágicas de Oswald de Andrade, da “ausência” cosmopolita de Murilo Mendes, de Oscar Niemeyer, do concretismo, da bossa-nova, do tropicalismo e do aparecimento de autores universais, como Guimarães Rosa ou Clarice Lispector, que ajudaram na projeção de gênios como Machado de Assis. Observa Carolina que o romantismo não afetou, nos Estados Unidos, a paixão pelo progresso! Quem sabe, tenhamos aqui um princípio de explicação razoável para os problemas, não só culturais, brasileiros e para, por outro lado, os problemas norte-americanos — onde a generosidade e a qualidade humana de tantos artistas, à la Henri David Thoreau, como por exemplo hoje Bob Creeley, supera o país e suas ideologias, em muitos aspectos.
Agradeço, por fim, à Fundação Vitae, que me permitiu, com seu apoio firme, encontrar-me com Michael Palmer, nos Estados Unidos, em outubro do ano passado, para concluir este projeto. Agradeço a Marjorie Perloff — uma vez mais por não me deixar ao léu. A Claude Royet-Journoud (de quem publico um trecho do brilhante poema “Une Méthode Descriptive”) pelos desenhos utilizados neste livro. A Tatiana Longo dos Santos, pela preparação dos originais e observações pertinentes, que enriqueceram este volume. A Darly Menconi, sempre.
Régis Bonvicino
4
There were nine grand pianos in my father’s house
one a water object in my head
and one a ship of glassone an eye on the end of a branch
and one a paint-pot spilling red
There were live fandangos in the father’s houseso that sleepers might sleep within the dance
and set their images to rest
Please tell me if you canDid it snow pure snow in some father’s house
and did the children chant Whether me this
then Whether me thatThere was a winding stair in this father’s house
climbing or falling no one would say
There were notebooks and nightbooksand voices enclosed by a ring of bone
They were crying Wait Don’t Wait
There were travelers standing at the gate4
Havia nove pianos de cauda na casa de meu pai
Um um objeto de água em minha cabeça
e um um navio de vidroum um olho na ponta do galho
e um um pote de tinta vertendo vermelho
Havia fandangos ao vivo na casa desse paidormentes poderiam dormir dentro dança
e pôr suas imagens em repouso
Diga-me se você podeTivesse nevado pura neve na casa de algum pai
e crianças decantado Se eu isso
ou Se eu aquiloHavia uma escada curva na casa desse pai
Subindo ou descendo ninguém saberia dizer
havia noitelivros e livros de notase vozes inclusas por um anel de osso
Eles gritavam Espere Não Espere
Havia viajantes em pé no portão5
At the fever of tongues
the metron, with wandering eye___
At the zero of streets and of windows
an arm in geometry___
At the circus of nets
at the torn first
edge of an image
the unit of distance
between the eye and the lid___
At the swarm of the messengers
___
At the storm of fine dust
___
At the pillars and the receiving paths
___
At the hidden roads of the disk
___
At the body of the speaking boat
5
À febre das línguas
o metron, olho vagando___
Ao zero de ruas e de janelas
um braço na geometria___
Aos circos de redes
no primeiro rasgo
margem de uma imagem
unidade de distância
entre o olho e a pálpebra___
Ao enxame de mensageiros
___
À tempestade de poeira fina
___
Aos pilares e às trilhas receptoras
___
Às estradas ocultas do disco
___
Ao casco de um barco falante
DISCLOSURES
1
Beneath the writing on the wall
is the writing it was designedto obscure. The two together
form a third kind2
There is no writing
on the wall’s other sidePerhaps this lack
constitutes a fourth kind3
Some of the writing on the wall
will be designated as truthsome as art
4
It is said to represent a mirror
of everyday life in its time5
“Fabius Naso
talks through his assholeand shits out his mouth”
for example6
“Foute les Arabes”
for example7
Certain words and images
or parts of imageshave been chipped away
These often turn up for saleat sidewalk stalls
before the wallsof other cities
8
I too have an image for sale
It’s the image of a poemand is to be found
on the reverse of this sheetREVELAÇÕES
1
Sob o escrever no muro
está o escrever designadoobscuro. Os dois juntos
formam um terceiro tipo2
Não há nada escrito
no outro lado do muroTalvez esta falta
constitua um quarto tipo3
Alguns dos escritos no muro
podem ser designados como verdadealguns como arte
4
O que é dito para representar um espelho
do dia-a-dia da vida em seu tempo5
“Fabius Naso
fala pelo raboe caga pela boca”
por exemplo6
“Foutes les Arabes”
por exemplo7
Certas palavras e imagens
ou parte de imagensse lascaram
Freqüentemente aparecem à vendana calçada, tendas,
ante os murosde outras cidades
8
Eu também tenho uma imagem à venda
É a imagem de um poemae pode ser achada
no reverso desta página
Notas
1. NABUCO, Carolina. Retrato dos Estados Unidos à luz da sua Literatura. 2a ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000.
2. Los Angeles, Sun & Moon, 1997.