Por Graça Capinha
Max Fuchs (Unsplash)
[N.R.: “Uma letra pende”, rubrica que hoje se apresenta aos leitores de sinalAberto, é da responsabilidade de Graça Maria Nunes de Oliveira Capinha, professora da Faculdade de Letras (Americanística, Tradução, Poética e Escrita Criativa) e Investigadora do Centro de Estudos Sociais (Literatura da Emigração Portuguesa [EUA/Brasil], Políticas & Poéticas das Identidades) da Universidade de Coimbra.
Esteve ligada ao Poetics Program da Universidade de Nova Iorque, onde trabalhou com alguns poetas da L=A=N=G=U=A=G=E School, e ao Projecto de Belgais.
Gosta de desaprender e de ensinar os/as alunos/as a fazer o mesmo.
Arrastou um curso livre de escrita criativa, “Oficina de Poesia”, e uma revista de poesia com o mesmo título durante 17 anos, e (des)organizou encontros de poetas durante outros tantos.
Acredita que não há poética sem política.
Além disso, viaja.
Neste primeiro texto, Graça Capinha fala-nos do título da sua rubrica agora inaugurada.]
Roubei este título do poema “Retrato”, incluído no último livro, Deus devolve o revólver, do poeta brasileiro Régis Bonvicino, que estava a ler quando o convite para participar no Ficcionário apareceu. Numa das estrofes desse poema, escreve Bonvicino:
O que a poesia tem de maravilhoso é que cada verso pode abrir inúmeras possibilidades de sentido. A unidade sintáctica, a frase, pode manter-se (aqui mantém-se, claramente), mas é o verso, marcado pelo silêncio antes e depois das palavras, que se torna a unidade de sentido prioritária. E foi assim que, tal como a flor e a letra, abrupto, o sentido isolado de “uma letra pende” se fez ouvir no espaço da mente, um espaço de infinitas possibilidades de relação de sentido e, desde o princípio de toda a linguagem, de criação metafórica.
Isolada, “uma letra pende”, essa unidade de sentido, veio, antes de mais nada (sim, a nossa educação marca-nos para sempre…), com os seus ecos bíblicos: como se, qual língua de fogo das representações mais kitsch do Pentecostes, essa letra pendesse sobre as nossas cabeças numa promessa de conhecimento absoluto, de nós e do mundo.
Porém, ela meramente pende. Continua ali, permanece, qual promessa sempre incumprida. Por isso, sempre tentativa falhada para nos permitir chegar ao sentido absoluto. E, contudo, como achava o grande poeta norte-americano Wallace Stevens: sabendo-a assim, fictícia, ficcional, continuamos a querer acreditar nela.
Stevens falava da poesia, essa ficção suprema, mas, em rigor, poderíamos falar de toda a linguagem (não significa poiein apenas esse fazer de linguagem, de letra, como nos ensinou Aristóteles?), de todas as palavras e letras que nos apontam para o mundo, substituindo-o, pendendo sobre ele e pedindo-nos — como as letras que pendem na imagem que escolhi para aqui ilustrar o que digo — VÊ!
Escrever é, assim, sempre uma tentativa falhada de trazer a Verdade (sim, com letra maiúscula) para a página. A letra que pende da porta, tal como ela também surge no poema de Bonvicino, é apenas uma imagem metonímica da queda, ela também de ecos bíblicos — a queda da/na linguagem: cair na linguagem que herdámos dos outros, nas formas que se cozeram nos fornos da história humana, nas estruturas de poder que tantas vezes nos aprisionam no que temos por verdade, na comunidade do humano que nos compôs a consciência e que nos permite ver (?) aquilo a que chamamos “o real”.
Cair nessa construção social e, agonisticamente, tentar refazê-la na linguagem, nas letras que pendem — é disso que se trata quando falamos, ou quando escrevemos. Talvez a poesia seja esse esforço na sua forma suprema, como queria Stevens.Digamos então que esta rubrica, “uma letra pende”, será a imagem desse meu esforço, dessa minha tentativa, que sei sempre falhada, de chegar a um sentido mais verdadeiro, de ver mais verdadeiramente.
Graça Capinha (Americanista, professora da FLUC e investigadora do CES, trabalha sobre poesia e poética contemporâneas. Coordenou, durante 17 anos, a revista e o curso livre de escrita criativa “Oficina de Poesia”)