José Paulo Paes morreu em 8 de outubro de 1998, um ano e um dia exatamente antes que João Cabral de Melo Neto, morto em 9 de outubro de 1999. A morte dos dois teve repercussões diversas: a de Cabral imensa, com jornais e revistas, especializadas ou não, oferecendo-lhe capas e cadernos inteiros ; a de Paes, discreta, mesmo quando algum veículo chegou-lhe a dar registro mais visível. Paradoxal: quando vivo, Paes estava constantemente na “media” e Cabral não.
Há cerca de um ano, lastimei, com amigos, o “desaparecimento” de Paes das menções e citações, por parte de críticos e poetas, sua ausência das listas (mesmo sabendo-as perecibilíssimas) de “melhores” – uma espécie de morte da morte da qual ora ele se resgata por meio do lançamento de “Socráticas” e de “Vejam como eu sei escrever”, este infantil, dirigido a crianças e adolescentes.
“Socráticas” reúne peças que estava escrevendo para o que seria um livro novo de poemas, com esse título e certa organização. É, portanto, inconcluso. Não se pode lê-lo sem pensar que seu autor morreu antes de terminá-lo. Seriam pois as tais um tipo de “memórias póstumas”. Seu “tom” não diverge do de “Vejam como eu sei escrever”, concluido ainda em 1998, antes de sua morte física. Nos dois volumes, Paes adota uma dicção simples, direta, numa linguagem quase unívoca, como se nos quisesse deixar “membretes”, recados. Assim, filiá-los à esta ou àquela tendência literária é pura tolice ou mera capacidade de “incompreensão”.
A palavra “recado” vem do latim: recapitu, recapitare, receptare, que quer dizer “receber”, “acolher” e “recuperar”. Fixo-me na acepção de “recuperar”. Paes quis, com suas “Socráticas”, recuperar, para a poesia também, certos valores éticos. Esta é a inflexão que torna extremamente legíviel o conjunto: a cívica, de protesto contra os (des) valores atuais da sociedade. Leia-se por exemplo “Apocalipse”: “o dia em que cada / habitante da China / tiver o seu volksvagen”. Ou o verso “Quem já não passou por isso?”, de “Fenomenologia da resignação”. Nunca é demais, nestes tempos de apagões e corrupções, transcrever um texto como “Do credo neoliberal”: “laissez faire / sauve qui peut!”. É contra este sentimento de “salve-se quem puder” que se volta o poeta, tanto em “Socráticas”, quanto em “Vejam como eu sei escrever”, trabalho que civicamente tenta captar a atenção das crianças para o verbo e a palavra, numa perspectiva de “solidariedade”.
Entre as peças de “Socráticas” destacaria duas. A primeira, “Lição de coisas” : “Uma nêspera branca! / transtornou-se acaso a ordem do universo? / Mordo-lhe a polpa: o mesmo / gosto das nêsperas amarelas. / Tudo é superfície”. Aí, a linguagem simples encontra coerência filosófica, materializando-se: a impossibilidade do habitar-se em profundidade tanto a coisa (o mundo) quanto a palavra. O poema registra a fragilidade fraudulenta das mudanças contemporâneas e aponta para a impotência da poesia: nêspera branca, que nada transtorna. A outra peça seria “Momento”: “Visto assim do alto / no cair da tarde / o automóvel imóvel / sob os galhos da árvore / parece estar rumo / a algum outro lugar / onde abolida a própria / idéia de viagem / as coisas pudessem / livremente se entregar / ao gosto inato / da dissolução – e é noite”. A imobilidade do objeto (automóvel), flagrada, leva o poeta a imaginar para ele um outro tipo de percurso, o de coisa pura, que adquire um ritmo natural e se dissolve, mas, na noite. Aqui reaparece a questão ética: a da mecanicidade do mundo, de sua falta de reflexão.Da interdição da reflexão livre: a imagem da noite, plurívoca, interronpendo o rumo “a algum outro lugar”.
“Vejam como eu sei escrever” é igualmente, como já se disse, um livro cívico. Diz às crianças que “escrever” não é difícil e procura afastá-las do óbvio mundo das imagens. É feito de estranhamentos: “O elefante não dá muito trabalho ao dentista / do zoológico porque só tem dois dentes”. Os dois livros colocam questão para a poesia: como reunir, num só trabalho, ética e estética, mundo e linguagem ?. A obra de Paes é um das respostas possíveis para esta equação e, certamente, merece permancer.