Aurora Bernardini
UM BARCO REMENDA O MAR / DEZ POETAS CHINESES CONTEMPORÂNEOS (2007)
Outubro de 2007
Diário Catarinense
UM BARCO REMENDA O MAR – DEZ POETAS CHINESES CONTEMPORÂNEOS
Aurora Bernardini
Professora de pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da USP
Como acontece em geral com todas as artes, um pouco de iniciação é importante para a sua melhor compreensão e conseqüente fruição. Há tempo tinha lido um livrinho muito esclarecedor de François Cheng A escritura poética chinesa, (Seuil, Paris, 1977) e diante do impacto da leitura dos poemas de Bei Dao, o primeiro e mais consagrado poeta de Um barco remenda o mar – Dez poetas chineses contemporâneos, a coletânea bilíngüe organizada por Yao Feng e Régis Bonvicino, editada pela Martins e recentemente lançada na 13a Bienal Internacional do Rio de Janeiro, resolvi retomá.-lo.
Impacto pelo seguinte: enquanto conseguia apreciar com relativa facilidade as imagens dos poemas dos outros nove poetas, isso não acontecia com os poemas de Bei Dao, um de cujos versos, por sinal, dá o nome à coletânea . Para saber por que, resolvi percorrer primeiro o caminho de cada poeta, de Pequim a Nanquim – em geral, suas cidades de origem ou de formação – acompanhando-os nos seus exílios e tentando descobrir os segredos de seu estilo .
Yan Li ( 1954), emigrado nos EUA em 1985, com o circular “ Devolvam-me” e o afiado “ Anzol”, que acaba por devorar a si próprio; Yu Jian (1954), conhecedor da Europa e dos EUA, com sua “ Tempestade” em que transfunde, modernamente ou pós-, cabelos, pele branca, fita cassete e uma pintura a óleo e a sua complexa“ Rosa”-mosca-ave migratória-treva do mundo; Gu Cheng ( 1956), emigrado para a Nova Zelândia e suicida que circumscreve sua “ Origem” e seu “ Adeus” nos sintomáticos contrários de “ Longe ou perto”; Hang Dong (1961), agora publicado oficialmente na China, com o significado secreto de “ Tua mão”e Xi Chuan ( 1963), hoje morando em Pequim , com o surreal de “ A cidade onde moro” e o nonsense de “O céu estrelado em Haergai”.
Lu Weiping ( 1965), membro premiado da Associação dos Escritores da China, com seus lapsos sintomáticos em “ Distraído” e os paradoxos de “ Salvação falhada”; Tian Yuan (1965), que estudou no Japão e também é muito premiado, em Agosto-explosão de estrelas-olhos de peixe-borboletas pretas-monte de ossos e em “Obra n.1”, onde o cavalo, por um desígnio enigmático, teima em manter-se a nove metros de distância ; Yu Xiang ( 1970), premiado tradutor de poetas norte-americanos, com suas profecias em “Logicamente” e as folhas caindo em “Voz baixa”: /como uma pessoa que viveu solitária/tanto tempo/e acabou por morrer / .
Finalmente, Yao Feng, o tradutor macauense de Fernando Pessoa e coordenador/co-tradutor dessa coletânea. Em português ele escreve “ pictogramas” como este, inédito antes dessa publicação: Às vezes/quero ser…/Às vezes/quero estar…/Às vezes/quero estar … e ser…/Juntam-se/ todos os meus sentidos/moeda/ em movimento/Sei que se vai extinguir/ Não sei o que vai ficar/ . Nele, justamente se nota a ligação pintura-poesia, que foi sempre muito intensa, na China, desde há três mil anos.
Nos dez de seus poemas chineses com que conta a coletânea, dedica-se, conforme Bonvicino, a “refabular as fábulas clássicas (…) sem deixar, entretanto, de ser suficientemente crítico”. Assim, as ovelhas “despem seus casacos de pele” (em “O lobo e as ovelhas “); o crematório é “Insumo energético da China” ( em “ Para os mortos na Mina de carvão de Taping”); muitas pessoas/ ou ficam loucas, ou se suicidam,/devido à luz demasiado prolongada./ ( em “Noite branca”); e …/ todos estavam com/ seus órgãos intactos e saudáveis ( em “ Amsterdã”); o que as minhas mãos juntaram/acabou por ser apenas sombra/ (em “Fim”); aquela tartaruga,/com a cabeça recolhida/em sua casca sólida e dura,/ não se moveu, e o tempo passou./( em“ Uma pedra coberta de musgo”). Já em “Chuva no fim da tarde”, em hipóstases sucessivas, as gotas da chuva batem no telhado, porta e janela,/ com tanta pressa, como crianças nuas/rogando abrigo./. No mês de “ Março” /todas as primaveras repetem o mesmo destino:/ florir e murchar… florir e murchar…/; em “ Peixe salgado”, /o peixe amargo sonha/seu salgado regresso ao mar/ enquanto no “ Planalto Central”/ o milho se planta há milênios/deita-se como semente/ergue-se outro:/cereal. Agora, ri para mim/ com a boca aberta,/dentes amarelos/mas não de ouro/.
O próprio Yao Feng, no texto do apêndice “ Encontro de línguas: os desafios da tradução” fornece pistas preciosas para a compreensão da poesia chinesa, e em particular da de Bei Dao ( 1949), que ele também, como Régis Bonvicino na lúcida Introdução, considera o maior poeta chinês da atualidade e a ele refere a frase de Otavio Paz: A Poesia que se encarnou na História. Há motivos para tanto: Dao serviu na Guarda Vermelha, indispôs-se com a Revolução, foi reeducado, foi fundador da revista extra-oficial Hoje, ridicularizada pelo establishment literário chinês por sua linguagem obscura e, em 1989 foi acusado de incitar a revolta estudantil na praça da Paz Celestial porque os versos de um de seus poemas estavam nos estandartes dos manifestantes.
Exilado, peregrinou durante anos pela Europa e pelos EUA.. Só em 2006 recebeu permissão para voltar a viver na China.
Ora muito bem. Se em “Mapa negro”,ou em “ Junho”, ou em “ Cantiga da estrada, a história de seu regresso à pátria dezessete anos depois explica suas imagens cortantes, a mesma já não mais nos basta para que entendamos, por exemplo, por que /a morte lança sementes no zênite/ ( em “Ramalá”), por que há /rumores de falhas /como o sol da manhã/ ( em “ Céu claro”) ou por que /em outubro sobre a retórica/o vôo é visível em toda parte/ e / soldados de neve removem seus disfarces / e tornam-se linguagem/ ( em “ Sem título”). A resposta, conforme explica o oportunamente lembrado François Cheng, parece estar justamente … na linguagem. Sabemos todos que na China, ela se expressa caligraficamente por ideogramas. O que eu não sabia é que dentro de um ou mais caracteres que compõem cada ideograma o poeta pode fazer surgir, dos múltiplos estratos gráficos, múltiplos sentidos. Num ideograma como “ na ponta dos ramos, flores de ibisco”, no caractere “ ramo” e no caractere “ ibisco” pode ser descoberto, graficamente, o elemento “ homem” que – conforme explica Cheng – pode ser interpretado como o homem se introduzindo em espírito no arbusto. Com máxima economia e sem recorrer a comentários externos, o poeta faz reviver a nossos olhos uma experiência mística, em suas etapas sucessivas e com imagens ditadas pela própria fatura do ideograma. Daí a sua misteriosa riqueza, e muitas vezes, para nós ocidentais, sua desafiadora aparente impenetrabilidade.