De cara, um livro de definições que não definem — não dão fim — e busca um mínimo luminoso nas coisas atiradas fora. Range em Estado Critico (São Paulo: Hedra, 2013) a contravelocidade de um dizer eco-lógico. Estado Crítico e suas nervuras metalinguísticas — poesia como impossibilidade e impre/cisão, alvo sem centro — seta sem alvo: “um poema negativo/se ajusta bem ao vago” (pág. 13). Estado Crítico e a “imagem impossível” de “Algum futuro” (pág. 105), esse contorno informe contemporâneo: poesia como um agônico modelo semiótico, discurso que se propõe em solo irremediável — um agora precário, em crise, espelho suspeito do mundo “apenas tolerado”. A deriva dos detritos da civilização e sua diversidade ruinosa que contamina os planos semânticos, do qual a imagem de uma garrafa de plástico flutuando sem rótulo (pág. 39) é o ícone mais notável.
Estado Crítico e seus ácidos despojos — a geração que mastiga plásticos fetiches vertidos pelas máquinas do real. A cidade e seu desperdício seminal — onanismo sobre dunas e escombros. O poeta como agenciador desses cacos comestíveis revolvendo o ermo da cidade, clicando monturos onde está ali mesmo o homem e as aves migratórias como letárgicas aparições, hausto de secretas resistências. O autor como manipulador desse acervo débil, sacos por onde escorre todo o chorume das produções, do consumo, feito uma gosma utópica, corrosiva e predatória — se me permite a imagem que em certa medida remete à fisionomia nodosa, entre atônita e triste, do desenho da capa.
Grande parte da obra de Régis Bonvicino, reunida em 2010 (Até Agora, São Paulo: Imprensa Oficial), tem demonstrado considerável rigor formal, fruto de experiências abertas e criativos diálogos intersemióticos com as poéticas internacionais contemporâneas.
Todavia, desencorajado por certo empachamento metalinguístico que tem pontuado a produção brasileira atual — pelo menos a que tenho acesso, algo em Estado Crítico me poupa de tecer considerações estéticas estritas sobre sua fatura, não fosse também limitada minha capacidade de análise, fato que me predispõe a me fixar em pontos — eu diria zonas antipoéticas — que, sem desprestígio de outras abordagens, mais me interessam aqui como leitor. É que a crueza e o insólito de suas imagens (esse Buda com geladeiras no abdome é uma assemblage!) meio que nos leva a prescindir das tensões formais do texto em si e daquela beleza “útil para dizer no ouvido” (pág. 89): há outra urgência a tratar.
Em todo caso, mesmo através de seus lances metalinguísticos (“Poema negativo”, pág. 13; “Este poema”, pág. 47; e “Paráfrase”, pág. 109), é possível classificar Régis Bonvicino como poeta crítico, isto é, aquele que, a um só tempo, percebe e vive a “impotência ideológica da poesia”, apontando em seu discurso a falência dos sistemas que a intermediam, assim como a falácia do estado como “ogro filantrópico” na expressão de Otávio Paz. Todavia, essa crítica que objetivamente expõe um estado em crise, não aponta uma solução, senão um doloroso aceno de exaustão que, paradoxalmente, está na raiz de questões que ainda se constroem, um pensamento e uma estética que ainda não desistiu de sua articulação humanitária entre inútil e esperançosa contra todo e qualquer “estado quimérico” (expressão do autor). Quer dizer, mesmo sem investir em todo e qualquer aprimoramento ético, Régis descarta a nostalgia de algum antanho em particular (no tempo ou espaço) que, afinal, seria também uma crítica ao presente. Em vez disso, pinta um quadro sujo onde os resíduos do presente, na vertigem do capital, se confundem com as ruínas de um futuro antecipado.
As figuras que compõem o quadro anímico de Estado Crítico assumem posturas dúbias, bélicas, entre ameaçadas e ameaçadoras: “o Buda sorri para o míssil” (pág. 68), “ataque de pios em surdina” (pág. 15), condores e morcegos assassinos, entidades amorfas, nômades, desassossegadas, em vigília — atônita leitura do seu tempo. Com efeito, a maioria dos poemas “descrevem” estados limites, inconciliáveis, bichos e pessoas ceando o mesmo medo, partilhando idêntica escassez silenciosa.
Daí ser possível indicar nesse livro um índice da falência de um mundo construído sobre impulsos salvacionistas, da cidade como lócus privilegiado do convívio e da preservação da fala — perdendo sua finalidade gregária. Em que pese a consciência de que sua poesia dá-se em “estado crítico”, tal seja, nas bordas de uma perspectiva suspensa, num exíguo território sem margens confiáveis, Estado Crítico tampouco resvala para a orgia catastrófica e não mergulha na predicação desesperada: sua fatura não nostálgica é grave e sutil, moldada na economia verbal, um silêncio ético, quase sem dar espaço a celebrações líricas.
Afinal, contrariando essa manobra racional do “processo civilizatório”, o autor — na contramão de Joseph Beuys, que via na máquina uma extensão da natureza — nos propõe uma fala desvinculada de algum projeto conciliador (os dejetos que denuncia são, em princípio, não renováveis porque produtos de um delírio dispendioso), tão desencantada quanto irônica acerca dos ganhos das políticas racionais. Na sequência de seus quadros, é possível destacar eventos mínimos, detalhes, como micro resistências (“o capim brota / num dos buracos da calçada”, pág. 99), ou resumidos encantos como, por exemplo, aquele doloroso recado passaporte para alguma felicidade à menina imersa no mundo parasitário das grifes: “Flávia, salve-se deste mundo/ com uma tatuagem” (pág. 27).
Portanto, parece estar na ponta dessas imagens, no fim e por trás dessa fala preocupada com seu habitat, uma tensão estética que se autonomiza, em que pesem os limites políticos dos discursos e o “esgotamento formal” e “a completa impotência ideológica da poesia” (expressões de Jean-Michel Maulpoix, em recente entrevista a Marcos Siscar: “Não depor as armas. Continuar ainda assim…”).
Fato é que, há muito Régis Bonvicino vem propondo um debate sério acerca das faturas poéticas contemporâneas, agenciando falas, gestos, leituras e discursos da arte do aqui agora, incluindo aí poetas novos do Brasil de cujo sistema de fomento à cultura é, com muitas e variadas razões, crítico incansável. Como editor de Sibila, revista eletrônica que tem-se mostrado razoável — para dizer o mínimo — na abordagem da produção poética contemporânea, tem-se mostrado disposto a alargar e repensar esse processo de intercâmbio: algo contra o pasmo imobilizante das veleidades literárias.
Enfim, na obra de Régis Bonvicino há traços marcantes de uma escrita que também “reivindica a ecologia de maneira atenta à linguagem” (tal como diz Paula Glenadel acerca da poesia de Michel Deguy, aqui). Com efeito, Estado Crítico compõe em seu título certa proposta de reconstrução de um mundo pensável, algo contra o engessamento (e a morte) de suas ideias. Poética que se inventa a partir da própria finitude, gesto orgânico que se assemelha a um mover-se vivo e silencioso, livre, possível, como o voo daquela ave que atravessa todo o território americano e vem bicar sacos de plástico na Avenida Paulista ou aquela outra que vai matar a sede às margens do sujo Tietê, cantando nos verdes recuos dos prédios de Perdizes, em São Paulo. Por outro lado, leem-se ai as sínteses problematizadoras e o espelho de um estado que se automutila, febril, contaminado pelos próprios dejetos, por sua política policial que “abusa da base aliada”, e cujo projeto de representatividade “respira por aparelhos”.
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O livro: Régis Bonvicino. Estado crítico.
São Paulo: Hedra, 2013.
Para comprar: www.hedra.com.br/livros/estado-critico
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junho, 2015
Cândido Rolim (Várzea Alegre/CE, 1965). É formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre/RS. Morou em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Tem publicados alguns livros: Arauto (Sabará/MG: Dubolso, 1988), Exemplos Alados (Fortaleza: Letra e Música, 1997), Pedra Habitada (Porto Alegre: AGE, 2002, traduzido ao espanhol pela Amotape Libros, Lima, Peru, 2014), Camisa qual (Porto Alegre: Éblis, 2010). Reside atualmente em Fortaleza. Faz parte de Alguns — Alguma Poesia Recente do Ceará (organização de Carlos Augusto Lima. Fortaleza: Eloisa Cartonera/Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura, 2006); Poesia Sempre nº 20 (Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2005); Vinagre — Uma Antologia de Poetas Neobarracos (organização de Fabiano Calixto, Edições V de Vândalo, 2013, disponível aqui).