Paris França, de Gertrude Stein, lançado em 1940, é um percuciente libelo em prol da arte como instrumento de civilização e sobre as quatro primeiras décadas do século xx, período que abarca as duas Grandes Guerras, panos de fundo para suas reflexões, a partir da França, onde residia com sua companheira Alice B. Toklas, ora em Paris, ora no campo. Quando escreveu Paris França, Stein já havia lançado sua obra-prima, Tender buttons (1914), ainda sem tradução para a língua portuguesa. Este, uma prosa/poesia de invenção na qual ela forja um novo estilo de narrar, esculpindo as palavras e, para tanto, ignorando, muitas vezes, seus sentidos originais. O volume é composto por capítulos curtos e de média duração, desconexos entre si e em si, que se estruturam com a definição de objetos, coisas e seres. Vejamos dois exemplos ao acaso. A vinheta “Um som”: “Elefante golpeado com bombons e refrigerantes e mastiga todos os parafusos e irresponsáveis ratos, ratos, isto é isto”. Ou “Um cão”: “Um macaquinho segue como um burro o que quer dizer o que quer dizer que mais últimos suspiros sucedem-se. Viúve-se com isso. Um macaquinho segue como um burro”.O estilo de Tender buttons, que muitos conceituam como cubista, a meu ver um tanto equivocadamente, extravasa para Paris França, em intensidade menor, porque este é um ensaio legível e atualíssimo sobre a civilização, as guerras e a arte. Stein vale-se da literalidade quase infantil para desconstruir significados que se tornaram clichês e para reavivá-los. Não me fixarei nos aspectos factuais do livro. Quero trazer à tona suas reflexões.
Comecemos pela moda – “Ora, por algumas dessas e por todas essas razões, Paris era onde estava o século xx. Também era o fato de Paris ser o centro da moda” –, quando então ela define moda como “abstração, uma coisa que nada tem de prático” (as pessoas comuns não vão usar as criações no seu dia-a-dia), para concluir que “precisavam de um pano de fundo da tradição de que homens e mulheres e crianças não mudam nada, de que a democracia é real mas os governos a não ser que cobrem impostos em excesso ou façam a pessoa ser derrotada pelo inimigo (guerra) não têm a menor importância”. Nunca é demais recordar, en passant, que foi Christian Dior, em 1947, que levantou o moral francês ao lançar uma coleção inovadora intitulada Corolle, que ficou conhecida como New Look, saudada nos Estados Unidos por Carmel Snow, da Harper’s Bazaar: “Dior salvou a alta-costura como a França foi salva na batalha de Marne”. Rita Hayworth encomendou um vestido a ele para a estréia de Gilda. Nesse pequeno trecho, há reflexões importantes sobre os governos: desde que não impeçam a democracia, eles não têm relevância, como se pode verificar nos dias de hoje, quando, ao contrário, perturbam a cidadania com impostos, censura e guerras.
Um dos pontos centrais desse livro é a contraposição que faz entre Estados Unidos e União Soviética e a parelha França/Inglaterra, guardiãs da civilização. Vejamos: “Então começa a ser razoável que o século xx cuja mecânica, cujos crimes, cuja padronização começaram nos Estados Unidos, precisasse de Paris, o lugar onde a tradição era tão firme que eles podiam parecer modernos sem ser diferentes”. Para tocar em questões cruciais como a produção em série: “o século xx não inventou mas se perturbou muito com a produção em série”. Daí ela entra na questão do progresso, afastando a arte de vanguarda desse conceito evolutivo: “A Inglaterra tinha a desvantagem de acreditar em progresso, e o progresso em verdade não tem nada a ver com a civilização, mas a França podia ser civilizada sem ter em mente o progresso”. Para ela, os pintores impressionistas haviam engendrado a produção em série, com “um quadro de manhã e outro ao pôr do sol”, ao passo que o século xx não estava interessado em impressões, não estava interessado em emoções: “estava interessado em concepções”.
Outro ponto relevante é que Stein, visionária, trata a guerra como um “romance”, afirmando-a menos parecida com a vida real: “É uma coisa baseada na realidade mas inventada, é um sonho tornado real, todas as coisas que compõem com um romance mas não realmente com a vida”. Está aí, além de uma definição precisa, uma condenação explícita. Em seguida, levanta a tese de que a guerra é produto da decadência da arte: “Como sempre a arte é a pulsação de um país […]. De Bismarck a Hitler, qualquer um pode ver que desde 1870 e até 1939 a Alemanha não teve nenhuma arte”.
A partir de seu cachorro Basket, que morreu aos dez anos, traça um perfil de Picasso – dono, naquela época, de um galgo afegão – que dela discordava quanto a adquirir outro da mesma raça do falecido Basket: “[…] e ele disse não, nunca arrume o mesmo tipo de cão novamente, ele disse experimentei isso uma vez e foi terrível, o novo me lembrava o antigo, e quanto mais se parecia com ele pior era”. Óbvio, Picasso falava de arte, e não apenas de cães. Por outro lado, os amigos franceses de Stein lhe diziam que conseguisse um da mesma raça que Basket, para ela concluir: “O francês percebe a inevitabilidade do le roi est mort vive le roi, mas o espanhol não reconhece a inevitabilidade das semelhanças e da continuação. Simplesmente não faz isso”. Com seu estilo quase desconstrutivo, “despretensioso”, criava um retrato relâmpago de Picasso.
O que de mais relevante há nesse livro é que Stein faz separação clara entre arte de vanguarda e progresso, aproximando-a do conceito de civilização, para neutralizar os novos bárbaros tecnológicos, Estados Unidos e União Soviética, que iriam dominar o século xx, infelizmente, com a Guerra Fria.
Gertrude Stein, Paris França (trad. Sonia Coutinho, Rio de Janeiro, José Olympio, 2007), 151 p. [Coleção Sabor Literário.]