Cine Marachá,Rua Augusta,talvez 1973.Talvez 1974.A figura de Julio Bressane,sentado numa poltrona.Haroldo de Campos e mais um par de amigos( Péricles Cavalcanti?).”O Anjo Nasceu” ou “O estrangulador de Loiras”? “Família do Barulho” ou “Matou a família e foi ao cinema”?
“Matou a família e foi ao cinema”.Lembro-me de ter anotado este poema-título em um de meus cadernos daquela época,ainda utópica ( mudanças na arte e na sociedade ).Conflito de filhos de classe média? Fui entender,mais tarde,em minha lentidão ,que se tratava,na verdade,de uma sentença-síntese sobre a cultura brasileira,onde os espaços para reflexão e sensibilidade são,desde a infância,subtraidos — com ou sem ditatura militar.Clichês de um poeta,acostumado com algumas palavras e sem tino para imagens.A respeito do caráter “utópico” daquela época basta anotar que,a partir do final do anos 80, já não se fala mais em mudanças,na arte ou na sociedade.
Ao longo de duas décadas fui assistindo aos filmes de Julio Bressane.Na verdade,cinema,para mim,sempre foi Julio Bressane,na medida em que sou, quando muito,um frequentador inconstante de salas.Fui assistir aos filmes de Glauber Rocha depois de ter visto Bressane e de ter visto o “Bandido da Luz Vermelha”,de Rogério Sganzerla. Glauber : “o cinema nacional é um abacaxi”.Revendo “Matou a família e foi ao cinema”,em 1994,pude processar coisas que não conseguia elaborar.Trata-se de um filme brasileiro ( uma identidade necessária ) e não nacional.Trata-se de um filme engajado,violento e sutil ao mesmo tempo em seu engajamento.Como não pensar nisso diante da sequência Márcia Rodrigues/Renata Sorrah, conversando a respeito de D.Hélder Câmara e da situação brasileira ( 1969), e — em seguida –o suposto assassino ( de quem? da família? da esposa? de quem? ) sendo torturado, até a morte num porão de Delegacia.Os primeiros dez anos de filmografia de Julio Bressane representam uma arte brasileira de invenção — para além dos maneirismos da vanguarda da época.Aprecio “Matou a família” não porque “quando as pessoas estão falando e não sai a voz,o silêncio tem a mesma importância que a coisa falada,no que tem uma relação com a coisa do John Cage…” ( Hélio Oiticica ).Não concordo,por outro lado,com certas visões que catalogaram,no período,o filme como “aristotélico” — menos “inventivo” que “Anjo Nasceu” — este sim transgressor e inovador.Em suma : aprecio o filme independente de ele ter estado dentro ou fora de um repertório de vanguarda dos anos 60/70.
O filme,por exemplo, não se “baseia” em citações,embora se refira,com elegância ,a Fellini,quando uma galinha branca aparece, levada pelas amantes femininas, numa banheira amorosa.Possui,também, com uma narrativa de entrelinhas e de sutilezas, começo,meio e fim — com toques à Cortazar.”Matou a família”: duas figuras femininas,o campo,a cidade,a navalha,a televisão,ruídos de água no início falando por palavras ( de atores ).Homens mediocres e violentos.Cenários mínimos e minimalistas.As várias sequências de “fuscas” e “decavês”,indo e vindo sobre pontes e avenidas largas,explicitando as limitações da “modernização” à la JK. A narrativa do silêncio : Julio mostra o filho assassinando o pai,enquanto a morte da mãe é registrada por um único grito.Ruidos do avião : o marido executivo bossa-nova partindo e deixando a mulher.Narrativa do silêncio: não como valor em si mas como instrumento para se contar uma ou diversas estórias.A força da precariedade : Bressane,neste e em outros filmes,conseguiu dar sentido estético elevado à cenas brasileiras ( e não nacionais ).O branco e preto, contrastados, da fotografia apontam para as situações extremas e ambíguas que o filme vai instaurar : o rico e o pobre,o amor e a morte,a lealdade e a traição ( a mulher pobre dizendo ao marido,pouco antes de ser assassinada,que já arranjou outra pessoa para lhe sustentar ),a sofisticação de lovely Márcia e a violência da mãe batendo na cara da filha….Há algo de notável nesta fita : a atuação fina e perfeita de Márcia Rodrigues em contraste com o desempenho explosivo de Renata Sorrah.
“Matou a família” tem a mesma força — de apanhar o fundamental da condição humana — que se pode ver em “Cabíria”,de Fellini,enquanto — na mão mais imediata — mostra os dilaceramentos de um Brasil depois de Juscelino e Jango,já sob as tensões da ditatura militar.O registro da passagem da modernidade à JK ( “fuscas” e “decavês” ) para uma outra “modernidade ” ( largas avenidas com “fuscas” e “decavês” e tortura,por exemplo ) é uma das qualidades deste filme,que parece saber condensar também os mais banais conflitos do cotidiano ,no caso, brasileiro.
“Matou a família” me leva — hoje — ao início de um poema de Robert Creeley,que tematiza o poder contido no ato de narrar : “Querendo contar / uma estória / como a simples invenção do inferno…”.Anjo.Mas,ao cabo,este filme,um clássico,fica para mim como a roda vermelha e as galinhas brancas de William Carlos Williams : “so much depends/upon/a red wheel/barrow/glazed with rain/water/beside the white/chickens”.
Régis Bonvicino / 1 de Outubro de 1995