Jacques Roubaud é um dos mais conhecidos e reconhecidos poetas franceses contemporâneos não só em seu país mas no estrangeiro. Sua obra ou parte dela está traduzida para inúmeros idiomas e entre eles, para que se verifique o alcance de sua difusão, o japonês. Roubaud, que nasceu em 1932, em Couluire et Curie, na Provença, é membro do grupo literário OuLiPo (Ouvroir de la Literature Potencielle), fundado por Raymond Queneau e François Le Lionnais em 1960 e que teve, em suas fileiras, Ítalo Calvino. Quem quiser pode visitar seu website, que está ativo no seguinte endereço: http://www.oulipo.net . Trata-se de um grupo experimental que buscava, em seu início ao menos, descobrir novas estruturas e padrões para a literatura, na verdade, uma das respostas francesas à questão das vanguardas, que foi recolada em pauta nos anos de 1950 e 1960 no mundo todo. Roubaud, que é também um matemático de renome, foi parceiro de Octavio Paz, do italiano Edoardo Sanguineti e do norte-americano Charles Tomlinson num poema coletivo intitulado “Renga”, de 1969. Sua bibliografia é extensa e inclui, além de poesia, crítica, ensaística, matemática e tradução.
Inês Oseki-Depré, tradutora de Quelque chose noir, de 1986, que acaba de ser lançado no Brasil (Editora Perspectiva, 2005, 148 páginas) com o título Algo:preto, explica-nos, em seu prefácio, que ele foi escrito sob o impacto “da morte prematura de sua mulher, a fotógrafa Alix Cleo Roubaud”. Sem essa nota, o leitor teria, ante a linguagem abstratizante do poeta, quase que advinhar que, na peça, se cuida da morte da amada. Na verdade, a informação, apontando para um acontecimento concreto, choca-se com a natureza do texto. No volume ora editado, a tradução não se faz acompanhar pelo original francês. E, em conseqüência, o longo poema composto por fragmentos de prosa e poucos versos, tem que ser “lido” como se tivesse sido escrito, originalmente, em português. Oseki-Depré, uma brasileira, que reside e leciona na França há várias décadas, expressa-se deste modo sobre Algo: preto, realçando seu caráter vanguardista: “… O passado da tradição, a poesia trovadoresca ou japonesa subjacente, o rigor e a regra, todos os elementos que na nossa língua oferecem, assim esperamos, algo: novo, no caso, a tradução se esforçou em “keep it new””. Portanto, não se trata de abuso do crítico ler o poema em português como se fosse mesmo o original.
A primeira decepção, como já adiantei, é o tom abstratizante e subjetivo, deste poema de Roubaud, ao contrário do estilo “ice cube”, seco,inventivo, a conciliar tradição e inovação, tal como apregoado por Oseki-Depré. Exemplos não faltam: “… eis o fim … o fim onde não há verdade alguma / além de uma palma de folhas em espaço … com seus excessos…”. Ou: “…Na superfície do líquido, arquipélagos de pó marrom tornam-se ilhas negras bordadas de uma lama cremosa que se afundam lentamente, horríveis…”. Não se escapa de dizer que o tom é “kitsch”, a revelar também seu propósito nobilante, o de transformar poesia em filosofia, por meio de sentenças vagas, como em “Ludwig Wittgenstein”: “… Puseste a fotografia da pedra na parede, sobre o papel marrom escuro, japonês, da parede: um pedaço de túmulo está na imagem…”. Outro dos grandes problemas Algo: preto encontra-se no uso e abuso, canônico, da segunda pessoa do singular, como no pequeno trecho citado ou em: “…Mas eis que: naquele instante eu pensava em outra coisa / sob os olhos do amor, infeliz: fracassado! / Não fales, não protestes, não penses, transparente ou não, bela ou desdenhável” E não se diga que exemplos estão descontextualizados. Tais características disseminam-se por todo o trabalho. O que se denomina de fusão artística da tradição com a transgressão, neste caso, tem resultado bastante duvidoso. Examinemos, brevemente, o fragmento “Pexa e hirsuta”, onde se invoca Dante. Pexa é mulher da tribo, hoje extinta, dos pexetins, que habitavam as margens do Rio Tocantins, a insinuar, como título, a nudez de uma mulher, uma nudez pura, natural O poema rememora uma cena de sexo com a sua própria mulher, agora morta: “Dante chama de hirsutos esses pedregulhos presos nos vocábulos e que suspendem o curso do verso em seu decurso”. Há um duplo sentido em hirsuto, inteligentemente utilizado: o de “duro”, a corresponder com o pedregulho, e o de “pelos longos”, a evocar a vagina. Mas, a autoridade de Dante perde-se no acontecer das palavras: “… Hirsuta a fragmentação de teus nomes, / eu os dizia sempre juntos, um chocando-se ao outro :/ Alix Cleo. / (…) / O que havia de hirsuto em tua nudez não era tua cabeleira baixa pretíssima em torno da umidade onde a língua passava escorrendo-te / Não a nudez mas teu nome. Em pleno gozar de ti dizê-lo”. Talvez este seja um dos melhores trechos de todo o livro, a ausência transformada em nome, em nomeação, embora marcado pelo fracasso em fundir tradição com vanguarda, acentuado por um filosofismo intelectual, que apaga a própria materialidade da cena, explicando-a na chave de ouro ou sentenciosidade de “em pleno gozar de ti dizê-lo”.
Muitos podem argumentar que, em Algo: preto, Roubaud faz um belo ensaio sobre o luto, sobre a perda, sobre a ausência do ser amado, um tema, note-se, tradicional. E que as restrições que faço aqui são meramente formais mas não o são. O uso das palavras afeta seus sentidos e o poema todo acaba resultando bastante confuso. Há de fato bons momentos consistentes sobretudo nos poemas eles mesmos quando Roubaud abandona a prosa curta, filosofante, para despojar-se nas palavras, a la Robert Creeley, como em “Luz, por exemplo”, onde também rememora sexualmente Alix Cleo: “ luz, por exemplo, preto / vidros. / boca fechada, abrindo-se à língua / janela / reunião de gizes / seios. depois embaixo. a mão se aproxima, penetra / Abre / Lábios penetrados, de joelhos/ Lâmpada lá molhada / Olhar repleto de tudo”. Não foi dessa vez, infelizmente, que Roubaud revelou-se um poeta significativo em português.