Aurora Bernardini | 13 dez 2013 | Crítica
Tudo, neste último livro de Régis Bonvicino, é extremamente esmerado. Desde o invólucro – a impressionante imagem da capa, do cubano Raoul Sentenat, mimando o título e o sintomático poema homônimo, um ponto alto do livro –, à orelha de Alcir Pécora, já em si uma chave de leitura, à quarta capa do percuciente Charles Bernstein, prenunciando aos leitores os poemas “requintados, oblíquos e estranhamente prescientes em sua luta feroz com a vida”, até a matéria do corpus, duro, coerente consigo mesmo, até o fim.
Tirante o breve trilíngue Blue Tile, publicado em Hong Kong em 2011, em que, entre inéditos, já se conjuga o verbo amar do “Poema Sério”, presente em Estado Crítico e quintessência do humor arguto e cáustico de Régis, esta é a primeira coletânea do poeta que se segue à reunião de sua obra Até agora,publicada em 2010.
Sua coerência poética afunda nas dobras do cotidiano em colapso, na “era do capitalismo terminal”, como o define Bernstein. Aqui e acolá – os flashes do “flâneur” varrem o mundo – esse cotidiano é revirado, esfaqueado, salgado, exposto ao vento, meio cadáver, meio lixo, para a degustação das gaivotas. O cachorro se debate, a onça-pintada morre, a ostra está em coma, o chafariz agoniza, o soldado urina, os dentes do príncipe estão podres, o gerânio se encarquilha, a borboleta sexy rosna. Só o lobo de pelúcia uiva. O quadro é implacável.
Haverá nessa destilação poética de projeção distópica, nesse mundo onde “não há futuro mas apenas tempo”, onde crítico é também o estado da poesia, algum respiro de vida que não seja estertor? Tal como o maciço de miosótis que “ainda rompe as grades do parque”, o poema negativo que “denuncia a barbárie” respirará ainda, embora por aparelhos críticos?
Mesmo a coruja cantando para o rouxinol, o carro pegando no tranco, o tio se reencarnando num rato, o padre operário sendo metralhado pela tropa de Pinochet, a rua infectando a chuva, a dália-gigante sendo agora uma flor sem pétalas, ainda tolerará o mundo, o poema? “Na pasta de rascunhos/ eis um poema/ manhã de sol, outubro,/ florido/ um bico-de-papagaio/ irrompe do muro/ um bebê num carrinho,/ dentro de uma carroça/ – ágil –/ sobre aparas de papel,/ arquivos mortos/ puxada pelo pai,/ entre um fiat e um porsche,/ ultrapassa veloz”. Enquanto ainda vingar a infância, no absurdo e a natureza ainda sobreviver, no artificial, “o resedá de casca lisa/ lilás, florido/ no canteiro da pista./ Num gesto abrupto, épico,/ subjugando o plástico”, ainda conseguirá agarrar os restos, parece dizer o poeta – aos que ainda esperam, ao menos.
Paráfrase
Toda leitura de um poema é ridícula
não seria ridícula se não fosse
a leitura de um poema
Também fiz,
em meu tempo,
várias leituras de poemas
Como nenhuma outra
a leitura de um poema
se há poema
tem de ser
ridícula
A verdade é que hoje
minhas memórias dessas leituras
é que são
ridículas
Só quem escreve hoje
verdadeiros poemas
é que é,
afinal, ridículo
Quem me dera
não dar nada
no tempo em que escrevia
sem dar por isso
poemas ridículos
Versão completa da resenha publicada na Folha de S. Paulo em 7 de setembro de 2013.