Paulo Leminski
Acaba de sair Régis Hotel, volume enfeixando os trabalhos mais recentes do poeta Régis Bonvicino, poesia nitidamente superior a maioria esmagadora dos redundantes livros de versos – que continuam brotando por aí como lugares-comuns, repetindo cada vez mais o trivial variado de sempre, produção em série de poemas de feitura média, legibilidade média, sensibilidade mediana, meia criatividade. Do alto dos seus 23 anos, o hoteleiro Régis já tem o que olhar para trás. Além de um livreto de poemas, Bicho Papel, editou três revistas de poesia, Poesia em Greve (com Pedro Tavares de Lima e Leonora de Barros), Qorpo Estranho (com Julio Plaza) e Muda (com Antonio Risério), ninhos de metralhadora na linha de frente das tendências da poesia mais radical.
Na constelação de Régis Hotel, os hóspedes são estranhas estrelas mutantes; a “letra” “duda veio” (uma obra-prima), o pornoideograma “nhê”, o cartum “gíria do poeta” , coisas instigantes, com gosto de chicletes e de sangue. Poesia, no Régis Hotel, é barra pesada.
Nasceu jovem
Em 1975, Régis Bonvicino, então com 19 anos, publicava a plaquete Bicho Papel, numa edição mínima, de três centenas de exemplares. Nada de especial, até aí.
Em cada cidade brasileira (grande/média/pequena), Rio, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador, Goiânia, Fortaleza, Recife etc., poetas de todas as idades editam, de qualquer jeito, livros e livretos, álbuns, folhetos e panfletos com “poemas” (?) . Que significa, em termos globais, essa produção, pequena em números, mas tenaz, persistente, intermitente mas incontrolável?
Subproduto do aumento dos índices de alfabetização, escolarização e universitarização (mais de um milhão de universitários) – que acompanha a classemedianização e urbanização da sociedade brasileira, sob a égide de modelos yankees de produção e consumo?
Afinal, qualquer cidadão plenamente alfabetizado é um candidato a escritor. Últimos estertores de uma cultura logocêntrica e livromaníaca, afundando no oceano planetário das mensagens pluricodificadas, veiculadas pelos meios de massa, via eletricidade?
Essa produção significa tudo isso e alguma coisa mais.
A precariedade artesanal desse produto oferece, felizmente, um contra/modelo, um anti/desenho, marginal ao sistema e ao mercado de função claramente crítica, ácida, desmistificadora. Mesmo sem querer. Seus efeitos colocam em cheque os valores da literatura editada, oficial e regularmente, por empresas e instituições.
Infelizmente, nas condições atuais do país, esses produtos, no plano da linguagem, são restos e refugo de jantares mais prósperos: uma salada de truques de Drummond com dicções de Neruda, saídas a la Cabral com as boas intenções do Violão de Rua, poesia beatnik e surrealismo.
Esse o território/mapa em que se move a nossa atual (assim chamada) poesia.
Não assim Régis Bonvicino.
Seu Bicho Papel arranca de outra fonte: as vanguardas – dos anos 1950/60, principalmente a Poesia Concreta, com a Tropicália, a vertente mais fecunda da poesia (= fazer verbal/textual) brasileira, nas últimas décadas.
Perante a multiplicidade das direções, das influências, todos estamos à procura da síntese: nossa síntese = nossa poesia.
Régis fez a escolha: o pacto demoníaco com as forças vivas do signo.
Se em poemas de Bicho Papel, como “avolho”, acusa uma filiação criativa com o concretismo, em outros momentos, aponta para as novas direções e caminhos – que a melhor “poesia” brasileira vai seguir daqui para diante. A assimilação crítica e natural do contributo concreto: pensar construtivista, zelo pela novidade, como quid das mensagens estéticas, o design de linguagem.
Nisso, Régis não teve dúvidas. Não fez nenhuma concessão à literatura oficial. Não é pouco mérito quando se tem 19 anos. Neste país, os jovens já nascem velhos. A ciência chama esse mal de “progéria”. Régis não. Régis nasceu jovem. Nasceu com sua idade.
Seu primeiro pique já liga direto com o momento mais radical imediatamente anterior.
As bestas de todos os apocalipses podem falar em epigonismo, diluição, cópia.
Inveja.
As bestas não são capazes de produzir informação nova. E se protegem por trás de uma barreira de álibis e justificativas.
Poetas humanamente muito dignos, como o sr. Thiago de Melo, procuram o “humano” e caem no academicismo redundante e destituído de informação que, contrariando, o propósito do signatário, serve ao Sistema Literário, lado literário do Sistema, sociopolítico econômico em que vivemos.
Régis aprendeu cedo (e bem) que a parte estava além. Ou aquém. Ao clássico livro de versos dos “18 anos”, Bonvicino respondeu com um papel/bicho.
Papel: o elemento passivo. O polo receptor. Bicho: o elemento ativo. O polo emissor. Ying. Yang. O fecundado. O fecundante. A conciliação: síntese dos contrários.
Régis Hotel
Em relação a Bicho Papel, Régis Hotel já apresenta uma poesia mais pessoal, mais intransferível, mais ela mesma. Ainda há traços de Poesia Concreta na poesia de Régis. Mas em adiantado estado de digestão. O Concretismo, hoje, já é parte integrante da história da poesia brasileira. A influência exercida sobre tantos poetas, as diluições, tudo isso tirou – naturalmente – muito do caráter polêmico, problemático ou discutível da teoria e da prática concretistas. Quem tem medo de concretismo, hoje? Seus recursos só assustam aos muito atrasados. Já passamos do período de polarização do tipo “só o concretismo é poesia” ou “concretismo não é poesia”. É um repertório, um estoque de saques e piques, uma conquista definitiva: um momento que está lá, rico, forte, agindo, claro e radioativo.
Com o tempo, a poesia de invenção foi passando de “alta definição” (do concretismo da fase dita “heroica”) para a “baixa definição” (tropicalismo), que vemos, hoje, em trabalhos como os de Régis. De invenção, aqui, quer dizer produtora de matrizes e de modelos.
Essa poesia de invenção mais recente tem partes com a música popular (tropicalismo), com o humor/cartum, com o coloquial. Foi uma passagem da literatura para outra coisa que a gente ainda não sabe bem o que é. Faz tempo que a criação mais radical, no terreno das palavras, se processa fora disso que a sociedade (à esquerda e à direita) convencionou chamar “literatura”. Os professores e os críticos, de modo geral, não sabem como “apreciar”, como “abordar” esses trabalhos. Na dúvida, ficam com Ferreira Gullar.
Os trabalhos atuais e mais radicais, é melhor colocá-los na geladeira com a tabuleta: POESIA EXPERIMENTAL / SUSPENDAM O JULGAMENTO. Como dizia, porém, Torquato Neto (um dos grandes da nova leva): “experimental, não. DE INVENÇÃO”.
Existem ainda aqueles que condenam e rejeitam o experimental ou a invenção. Com eles é preciso ter paciência e teimosia. Como diz o provérbio ucraniano que Kruschev gostava de repetir: SÓ A COVA CONSERTA UMA CORCUNDA.
A poesia de Régis Hotel alinha na direção a que apontam, também, a poesia de gente como Torquato, Duda Machado (Zil), Alice Ruiz, Carlos Ávila. A direção para onde apontam as letras de Caetano etc.
Hóspedes de Régis Hotel
Muitos ventos, não apenas de “autores”, mas também de outras áreas e artes, cruzam nesse Hotel. O momento mais alto do volume, “duda veio”, com um jeitão largado de “letra” de música, é também o mais pessoal e esconde, por trás de sua aparente facilidade, as sutilezas de malandragens de dicção, ideia, cadência e perícia de linguagem como não se vê por aí todo dia.
Os momentos menores são aqueles como a linguagem* onde a poesia não consegue superar o artifício, quando a poesia de invenção naufraga no maior perigo que a ameaça.
O importante é que Régis raramente repete soluções: cada poema deve ser um achado. Esse o saudável das lições. E atinge resultados como o poema-minuto “são paulo”, seta tupi apontando, criticamente, para a cidade de São Paulo. Aliás, a cidade está presente já na capa, uma foto-achado do poeta passando em frente de um hotel, de verdade, chamado “Régis”… E continuam aparecendo em textos como “nhê” e “signal público”* (fundação da cidade, com logotipo extraído de documento do século XVI). São Paulo está presente, além do plano anedótico, na gana pelas linguagens industriais (o excelente “pare”*, um dos melhores, versos/foto, com fotorrimas), de massa (quadrinhos). Na preocupação com a modernidade. No clima superurbano que se respira em todo Hotel.
No encarte/prefácio, Régis define seu livro como uma “tentativa de pensar a função do poeta numa cidade industrial e cósmica”. Para isso, é preciso pensar a própria poesia, sua natureza e seu alcance, coisa que ele faz em poemas como “limina”, “o que há” e “poema gole”. Uma das mais importantes tarefas do poeta é de refletir sobre a natureza da própria poesia. Alerta, Régis interroga os poemas-hóspedes do seu hotel, lugar de passagem. De trânsito. Cada um fala a verdade, a sua verdade? Quando eles seguirem viagem, que novos hóspedes virão?
Polo Cultural, Curitiba, 18.5.1978,
Paulo Leminski