Régis Bonvicino, o poeta brasileiro que melhor experimenta as possibilidades de ”uma linguagem plurívoca”, publicou recentemente o seu nono livro de poemas, Remorso do Cosmos (de ter vindo ao sol), livro que destoa da afasia, da repetição e dos desfazimentos sem risco da atual poesia brasileira
Manoel Ricardo de Lima
articulista do Vida & Arte
As discussões da arte brasileira hoje, pra todo lado que a gente estica o olho, só pra observar, que só besta mete a colher mesmo, diretamente, é pra pensar sobre lei disso, lei daquilo, política pública disso e daquilo e dinheiro nosso vazando pra tudo quanto é lado e quase produção nenhuma de qualidade. O que isto nos gera é cansaço, minimamente, ou enfado. Ou desleixo, que ao menos é palavra mais bonita e faz mais sentido: um certo deixa pra lá, um é isso mesmo, ou um simples tanto faz (fa lo stesso). Depois, de outro lado, ou do mesmo, uma larga esquizofrenia de gente que acha ter o que dizer e reclama espaço, espaço, espaço. Pois que ocupem, que digam o tanto que precisam e sabem, porque da parte de cá o gesto é silêncio e escolhas, simples escolhas muitas vezes não tão óbvias, e talvez um senso que é no silêncio que mais se diz, se faz e se é feliz com sorriso largo.
Foi com este debruçado que me deparei com um poema chamado ”Antimuseu”, trecho dele: ”o sal da lua nas ruas ainda vazias, palmeiras, o vento nas palavras, pio, esparso, pássaros, e ela não mais jorra, pelos telhados, a água, o que não passa com chuva”. O poema é de Régis Bonvicino. De pronto, me remeto a uma frase também dele que sempre ecoa aqui quando volto meu olhar para pensar o poema, para estes silêncios, ou às fraturas dele, ao entre, ao UM OUTRO, ao que sobra, aos objetos retirados de sua função, ao deslocado e ao deslocamento: ”Tudo o que é deixado de lado me interessa, interessa ao meu olhar de poeta”. Esta frase volta também sempre que tento pensar a produção do próprio Régis, talvez o poeta brasileiro que ousa impor mais riscos à sua própria poesia e ao pensamento que a circunda (e aqui falo pensamento mesmo, pra dentro do problema mesmo, com suas questões de fato, sem lei nem rei nem fé). Ou seja, um bom alento entre tantos desfazimentos, repetições e afasias.
Em 1999, Régis publicou Céu-eclipse, seu oitavo livro de poemas, e de lá para cá expandiu sua conversa a partir da revista que edita, Sibila, com a melhor poesia contemporânea americana e mais, de outros lugares, tanto fazendo se de Portugal, da França ou de Macau, e com outras expressões que lhe interessam, como as artes plásticas e a política e principalmente com uma travessia de línguas, de espaços urbanos, de culturas. Publicou lá, traduziu e foi traduzido, publicou poemas e ensaios aqui e ali e, certamente, andou refazendo a mão.
Régis acaba de publicar Remorso do Cosmos (de ter vindo ao sol), Ateliê Editorial, que foi onde li ”Antimuseu”. Este livro de Régis, como sempre tem sido a cada livro seu, é uma surpresa dentro. Se bastasse construir resumo diria que é uma compressão densa de nossa experiência moderna já empobrecida e que toma como anteparo – para frente – o interrompido; depois, uma tensão inequívoca das premissas que norteiam o sujeito contemporâneo; um refazer do esfacelamento e do provisório; um dito firme para fazer titubear discursos prontos ou, simplesmente, um silêncio invertido sobre o destroço da alma, da vida mesmo, da guerra, do país, das fronteiras, da condição humana: um gesto sereno, uma possibilidade, uma escritura singular para a sobrevivência. Mas não basta. Como escreve neste fragmento de ”Decantando”: ”eu coloquei o jarro na mesa / colocando o jarro na mesa / estava colocando o jarro na mesa / daqui, gráfico, garoupa / (…) / no sentar-se, sem programa, fixo / um grumo daqui garoupa / colocando, daqui / pistão, grumo / o jarro pousando na mesa, / confrontando-se com ela”. E a poesia de Régis se dá no risco, e aí só convivendo muito com ela, experimentando-a na filigrana.
Os temas e o trabalho com a linguagem engendrados na poesia de Régis são outros inventos de palavra (como no caso das palavras politicamente proibidas pelo projeto Échelon). E é na forma que habita uma tessitura de amálgamas. São preocupações de quem pensa o mundo e a vida como uma tensa. Em seus três poemas ”Sem Título” este trabalho a que me refiro se evidencia. Segue o primeiro: ”Minas, silenciadores, a dissolução prévia do corpo, nadis, flama, recôndito, Sundevil, Léxis-nexis, arpa, sard, cisa, carmina, estrondos, satcoma, satélites, retratos na parede, capricórnio, gama, gorizont, ISSO, parasita, morgancanine mantis, ionosfera, reflexo, & surto de outras figuras, batedores, white noise, sexo, enseadas, Speakeasy, colmilho, miras estriadas, os ópios de emergência, e um vento, índigo, explosivo, mania, gases úteis para o exercício diário da vida, janela, Bubba, the Love Sponge, onde pousava, de madrugada, a brisa”.
Assim, desta forma, é fácil crer que este Remorso do Cosmos é ponto ou cisma de nossas circunstâncias, as mesmas de antes e outras de agora, que geram o tal enfado, um certo cansaço e um vinca em desleixos. Régis passa a apontar o deslocamento como prisma ou ”constelações de uma língua plurívoca” (como as iluminuras que Susan Bee, artista plástica americana, fez especialmente para o livro): seus poemas estão sugeridos por registros marcados, mas ao mesmo tempo abertos para um prisma seguinte, uma alexia para quem se depara com eles. E é neste sentido que Régis, amém, destoa do que se costuma ver e ler na atual poesia brasileira e afins.
Manoel Ricardo de Lima é professor de Semiótica e Literatura, UNIFOR, autor de Falas Inacabadas, com Elida Tessler, e As Mãos