Céu-Eclipse, novo livro de poemas do escritor, representa nova literalidade na trajetória do autor de Outros Poemas
Por Aurora F. Bernardini
Querer que a poesia limite com a filosofia e até mesmo a prenuncie, não é apenas retórica. Depois de Pound e Hölderlin, consagraram-se as formulações “os artistas são as antenas da raça” e “o que fica o fundam os poetas” (ou o “o intuem”, conforme a nova interpretação do verso de Höldelin que Umberto Eco dá em Kant e o Ornitorrinco) . Mas mais tarde, no livro Sobre a Certeza, terminado dois dias antes de sua morte, incorporando à Lógica a Retórica (“tudo o que descreve um jogo da linguagem pertence à Lógica”) , na realidade do nosso fin-de-siècle quando já não há mais “fundamentos” aos quais se apegar, Wittgenstein como que inverte a coisa: “Se mudam os giros da linguagem, mudam os conceitos e, com os conceitos, as significações das palavras.”
Ora, se os conceitos dependem da maneira como eles são expressos, a linguagem não é apenas a mediação mais importante de nossa condição humana, ela também é (ao menos em parte) co-autora dos próprios conceitos. Com isso chegamos aonde queríamos chegar, ou seja a algumas considerações sobre Céu-Eclipse, Poema-idéia, o novo livro de poemas de Régis Bonvicino, um dos prenúncios (quiçá) do começo do milênio.
“Às vezes me imagino como uma palavra, num poema. Com uma existência de palavra e espaço branco. E silêncio! Este, a poesia, é o sentido que encontro para estar por aqui”, diz Régis em entrevista a Caracol-Viola. Se comparada com a fase anterior – a de Outros Poemas (1990-1992), por exemplo -, onde está ainda muito presente o circuito eu-outro (“Não nada ainda do outro/semelhante ainda ao mesmo/mínimo ainda o outro/ele mesmo não ainda outro/de um mesmo morto outro/insulado em seu corpo/…”), é sintomática essa nova literalidade do poeta. Palavra dentro do poema, interpretando sua situação como uma nova ontologia, o ser-régis é seu próprio evento. A experiência de sua realidade passa a ser em grande parte experiência de imagens/figuras, não raro paradoxais (“estreitos cancelados/por um ir e vir de barcos/” p. 90; “Barco atado ao azul, contra o morro,” p. 87), que se perseguem, se despregam, se consomem, se transformam, se substituem (“O sol é céu/em forma de azul/que a água não repete/mesmo em reflexo//mente/é forma de corpo/sentindo-se/ resignada//um e outro/como o vento na água”) e se disseminam no texto em níveis diferentes, onde, como na realidade vista do alto do novo milênio, lógica e retórica se intercambiam.
Mas o que se passou com o “fio de arame” onde estavam suspensas as palavras-borboleta no qual a crítica Marjorie Perloff se apoiou em Ossos De Borboleta, seu livro anterior? Agora ele fez-se “prego” (p. 59 ) ou “horizonte” e assimilou-se à “voz de cabeça” (p. 47) . E a borboleta, de emblema estruturante (“Vincos do mesmo ainda/no íntimo do outro tampouco/cicartrizes unem/tatuagens dissipam/antenas clavadas, em tinta/cacos do outro estilhaços do outro//Uma borboleta fixa encobre/cicatrizes num corpo” – Outros Poemas) fez-se foco e transformou-se em flor ( p. 59).
Para leituras exemplares:
“LUZ“
“Luz do abajur
dicionários
no quarto
minúsculo
sobre a mesa
um mapa da lua
tinta seca
de silêncios
gêmeos e frio
um prego de arame
na cabeça
borboletas se acenderam em mim
dálias
meus dedos
se moviam sobre as teclas
entretanto
sombras
antecipavam
cada
palavra.
borboletas se acendem em mim
dálias
meus dedos sobre as teclas
sombras
precipitando entretanto palavras“
A cesura abrupta porém, de simples sinal gráfico passou, qual “cor-/rente/de vento” (p. 29), a elemento de composição.
“CORO”
“Coro de
Semáforos
Vidros –
Sem cor
Ritmo
A intervalos regulares
Áspero
De pistas
E céu-eclipse
Postes
Cartões-postais
À venda
Numa esquina
Malva-
Rosa artemísia?
Ígnea
Inesperada vida
E retina
Um tipo de
Jardim”
A palavra ideal de Bicho Papel – “Eu queria/uma poesia/como um quarto branco/quatro paredes/oito cantos” – como que transpropriou-se à procura de sua verdade e pelo teto, pelo chão… desconfinou-se. As cores fundiram-se, as flores (“quando não cadáver de flor só”) povoaram-se de insetos (quando não cegos), as pétalas-páginas abriram-se ao céu em eclipse. Terá a mobilidade do simbólico, “qual concha de nenhum mar”, a capacidade “de obviar a morte”? Só numa realidade desrealizada em que, como diz o filósofo, a “propriação” dos seres é dada como “transpropriação”, em que, como diz o poeta, a pista é o salto numa nuvem/carga exponencial nula.
CÉU-ECLIPSE, de Regis Bonvicino. 34, 120 págs., R$ 19,00.
Aurora F. Bernardini é professora de pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da USP