Aurora F. Bernardini
Sugestivos o título e as iluminuras da artista plástica norte-americana Susan Bee que abrem e fecham esse novo livro de poemas de Régis Bonvicino, Remorso do Cosmos (de ter vindo ao sol); junto com as epígrafes contêm os densos indícios de seu conteúdo: séries, mutações, constelações de uma língua plurívoca que escapa às costumeiras mensurações e que vai, atravessando o tempo, do cosmos ao caos, numa cozedura apurada ou síntese de linguagens e de domínios.
Em “Sem título (3) (duas vozes)”, lemos, por exemplo: “vejo estrelas com motores no céu da janela/ de minha sala/ Lately, I’ve seen stars with motors in the sky,/ from my window e borboletas voltam para mim como primers/ atiradores/ gatilhos/ butterflies come back to me, as/ detonators ou Boca de mil dentes/ Intermitente/ Cospe os fardos” como diz, no começo, seu “Manifesto”.
Ao mesmo tempo em que, entre os espaços urbanos, um dos principais leitmotive da poética de Bonvicino, se inserem agora com muita visibilidade outros espaços, naturais ou humanos, para chegar ao “espaço último/ quando um míssil/ noctilucente triste lúgubre” (“A nuvem”). Assim, entre os reinos, é o vegetal que floresce, extremado, numa festa de magnólias, calêndulas, rosas, begônias, hortênsias, tulipas, jacintos, gardênias… Isso não é apenas, como diz Francis Ponge, (L’oeillet – La Guêpe – Le Mimosa), para fazer com que o espírito humano se aproprie das qualidades das flores que a rotina lhe impede notar, mas para, quebrando essa mesma rotina, fazer com que o ser humano tome consciência da terrível hibridação que o cerca, “destino de pétalas/tulipa ou verbena/ do cosmo cai/ uma estrela cega” (“Etc 8”).
O mediador dos acontecimentos, em Remorso do Cosmos, é o deslocamento. Da Catalunha à Índia, de Manhattan à Bahia, é o deslocamento que afasta e que aproxima, que recorda, que constata, que considera, que conclui. Tentando atrair imagens “como se tocasse um piano mudo”, não deixa, contudo, de ver, entre profusões de flores, “cadáveres abandonados em valetas/ cotação de pregões/ (tudo está à venda)” e a borboleta de outrora se retransfigurando em “esqueleto de morcego”, num mundo que “Dispara mísseis em sílfides, falbalás/ e nos silos/ devassa de asas e estrelas” (“Poema”).
Atualíssima, feita de palavras simples, raras ou politicamente proibidas (pela censura do projeto Échelon), a poesia de Bonvicino engaja-se nesse livro na causa da sobrevivência universal e ainda e sempre tenta alcançar a haste verde da flor e na “água, o que não passa com a chuva” (“Antimuseu”).
Aurora F. Bernardini, junho de 2003