Vem de sair Poetas Franceses da Renascença (Martins Fontes), com seleção, apresentação e tradução de Mário Laranjeira, tradutor que, há pouco mais de meia década, já havia oferecido ao público brasileiro Poetas de França hoje, uma extensa e cuidada antologia de poesia contemporânea, autores vivos, a única existente no circuito brasileiro, sempre muito avesso, por mais paradoxal que pareça, a qualquer “estrangeiro”, que é automaticamente tomado como ameaça a seu nacionalismo auto-referente.
Neste novo volume, Laranjeira, confirmando sua erudição e sensibilidade, trabalha com os poetas franceses do Século XVI, aqueles que, em ruptura com os padrões feudais, criaram o francês considerado moderno, normativo; aqueles que balizaram a língua francesa e ditaram sua correção gramatical, válida até os dias atuais. São os poetas da Renascença e da Reforma Protestante, que afastaram, também nas palavras, as tradições medievais.
Laranjeira opera com dezesseis poetas, entre eles Joachim Du Bellay e Pierre Ronsard. Na verdade, todos estes autores procuravam afirmar a qualidade da língua francesa diante das línguas e literaturas clássicas, ou seja, diante do latim e do grego, declarando-a, por meio de poemas, tão importante quanto estas últimas. Em suma, buscavam demonstrar, em seus sonetos, que a língua francesa era, igualmente, uma língua de cultura e não apenas uma língua vulgar, derivada do latim e incapaz do sublime.
Tais autores alteraram, por exemplo, a acentuação do decassílabo, em diálogo com a Itália de Dante, Boccaccio e Petrarca, onde primeiro havia aparecido o espírito renascentista. Ronsard ou Du Balley faziam, digamos, literatura de literatura: imitavam os italianos e, sobretudo Horacio, para conferir dignidade cultural à sua língua materna. Leiamos um exemplo que nos vem do poeta Mellin De Saint-Gelais (1487-1558), num soneto que também se vale da técnica da enumeração, que, séculos depois, seria um dos instrumentos dos modernismos europeus e americanos. Saint-Gelais, uma espécie de Cole Porter da Renasença, ouso dizer pelo tom de canção de suas peças, lista lugares e objetos de alta qualidade, para dizer que, todavia, não superam os dotes de sua amada, aproveitando a ocasião para criticar os desvios da época: “ … Tantas barcas não há em Veneza / Ostras em Burgo, lebres na Champanha, / Urso em Sabóia e gado na Bretanha / cisnes do Tâmisa na correnteza…”. Agora, na terceira estrofe, evidencia-se a crítica de costumes: “ … Nem tantos monstros há em terra africana / Nem na República há tanta chicana / Nem em Roma há tanta graça dada …”. . Nestas linhas, esboçam-se muitas das questões que viriam a caracterizar a Renascença, a Reforma protestante e toda a revolução posterior no mundo dos direitos.
Leiamos um exemplo de busca do sublime em Louise Labé (1525-1565): ” Ó belos olhos, brunos, desviados, / Ó quentes ais, ó lágrimas vertidas, / Ó negras noites a esperar perdidas, Ó dias claros sem razão tornados …”. O ato de consciência, que eleva a língua francesa, está na percepção da falta de razão dos dias claros, no torneio deste paradoxo, na elocução deste pensamento. Findemos com Du Balley, que alguns consideram, exageradamente, um “antropófago” avant-la-lettre por ter devorado os modelos greco-latinos. Neste poema, Du Balley tenta, em vão, negar a apropriação dos modelos do Trecento italiano e da antiguidade clássica, em sua luta pela dignificação da língua francesa: “ … Mais me agrada a casinha, obras de meus maiores, / Que um palácio romano em seu luxo e esplendores, / Mais que o mármore duro estimo a ardósia fina: / Mais o Loire gaulês, do que o Tibre latino, / Mais meu baixo Liré do que o monte Palatino …”. No bom sentido, são, no dizer adequado de Mário Laranjeira, os poetas que, em francês, falavam grego e latim.
Poetas Franceses da Renascença / Seleção, apresentação e tradução de Mário Laranjeira, Martins Fontes, 122 páginas.