Oportuno reiterar a qualidade da organização desta Poesia Completa, de Raul Bopp, feita por Augusto Massi, e reafirmar, sempre, a importância de sua iniciativa, que, a partir de minuciosa pesquisa, fixa todo o conjunto do trabalho do poeta, pela primeira vez, libertando-o, por assim dizer, da pecha de autor de um só livro, “Cobra Norato”, escrito em 1921 e publicado em 1931.
” Cobra Norato” é, a meu ver (e creio também o de Massi), o principal poema de Bopp e um dos marcos de nosso modernismo mas não é, muito ao contrário, seu único trabalho de expressão, como nos mostra o presente volume, que traz, entre várias, experiência significativa como o então desconhecido “Como se vai de São Paulo a Curitiba”, de 1928, que, — como em todo Bopp — mas in casu de forma radical — dissolvendo fronteiras,incorpora ao poético a informalidade da anotação e a velocidade da escrita de jornal,técnicas naquele momento pioneiras.Poema de versos longos,as inovações de Bopp dão à sua aparente construção de prosa músculos de poesia: “… Voltamos. Retomando o outro estirão da encruzilhada / Rampas de tocos. Pedras de vento lambido,incrustradas na estrada. Passamos um “atoledo” murcho,esboroando os bordos dos rastros, estorroados e rijos. / Uma porteira…”. Entre as muitas sutilezas do trecho (e do todo o poema), há a de registrar o movimento, do automóvel, no qual se fez a viagem, e o da própria paisagem, por meio do verbo andar, que se anagramatiza em “retomando”, “rampas”, (vento) “lambido”, “esboroando” — a deixar, na linguagem, os rastros de símbolos que se querem imagens à mão.
Não sem pertinência Augusto Massi afirma que “a viagem e o diálogo estruturam a linguagem poética de Bopp”. De fato, sem eles (e sem a presença de Tarsila do Amaral e de Oswald de Andrade, sobretudo, acrescento) não se pode compreender a obra central, sim, como também assevera Massi, deste poeta modernista, que, desde a adolescência até a aposentadoria como Embaixador, fez da viagem instrumento de trabalho de campo e do diálogo modo de reinventar um certo Brasil e de se abrir para as inovações oferecidas pelo cubismo, por Freud, por Marx e pela antropologia. Aliás, não seria inadequado lançar Bopp como um dos precurssores mundiais, no século XX, da etno-poesia.
A edição, como que a reparar o relativo esquecimento a que foi relegado, traz textos dos principais poetas e ensaistas deste Século no Brasil, na secção “Fortuna Crítica”. É de Oswald de Andrade (criticado levemente, a meu ver, sem fundamentação, por Massi, por um suposto etnocentrismo paulista, em sua introdução) uma das mais pertinentes definições do autor e da obra: ” E como “Cobra Norato”, sua viva expressão autobiográfica, ele soube nos trazer o Brasil na boca. Raul Bopp aparece diverso de Mário e seus cacoetes e diverso de “Pau-brasil” litorâneo. É a terceira forma do Brasil atualista. Em “Cobra Norato”, pela primeira vez, se realizou a poesia brasileira grandiosa e sem fraude. Bopp fez o que Gonçalves Dias não conseguiu e o que mais de um modernista, viciado nos conchavos eleitorais do talento, teima em fracassar”. Um dos traços que Oswald capta é o mítico, por meio da recolha das lendas orais da Amazônia, por exemplo.
Há uma peça interessantíssima de Carlos Drummond de Andrade, onde ele examina as alterações feitas por Bopp, no “Cobra Norato”, ao longo de suas sucessivas edições, para concluir: “O velho livro de versos modernistas, aparentemente tão datados, ressurge hoje em toda a sua novidade, e o amadurecimento do poeta mais o apurou. E é possivelmente o mais brasileiro de todos os livros, escritos em qualquer tempo…”.
Murilo Mendes não deixa, na mesma senda que Drummond, de perceber como o poeta encontrou este caráter brasileiro: “na linguagem, Bopp, forjador de um léxico saboroso, fundiu sabiamente vozes indígenas e africanas, alterando a sintaxe, sem cair nos exageros e preciosismos de Mário de Andrade”. Todavia, para mim, o ensaio de Sérgio Buarque de Holanda, intitulado aqui “O bom dragão”, é o que mais profundamente compreende Bopp (sim um poeta de primeira linha com o que produziu nos anos 20), por ele batizado de figura “metropolitana e cosmopolita”.
Há um bom texto do recém morto José Paulo Paes,articulando “Cobra Norato” ao movimento tenentista, a desvelar seu lado político e a problematizar, nele, alguns aspectos, como um possível saudosismo agrário, antiindustrial. E outros de bom nível, a complementar a introdução do organizador, que se empenha em analisar e atrair luz para os poemas menos lidos e estudados, com os da série “Urucungo”, de 1932, relacionada com a escravidão e que cintila em fragmentos como “Favela”: ” À porta da venda / negro bocejou como um túnel”. Bopp, nesta peça, estabelece uma relação entre senzala e favela, registrando como os negros viviam na cidade, num só golpe de síntese, que vem antecedida pelos belos versos: ” Bananeira botou as tetas do lado de fora. / Mamoeiros estão de papo inchado. / Negra acocorou-se a um canto do terreiro. / Pôs as galinhas em escândalo…”. Nesta mesma série, estampa-se um dos mais lindos poemas de Bopp, o “Coco”, sobre Patrícia Galvão, a Pagu. Sua fluência o faz, a meu ver, precurssor imediato de “Garota de Ipanema”, de Vinícius de Moraes e Tom Jobim. Aliás, Vinícius conviveu com Bopp em Los Angeles nos anos 40 e dele foi admirador. O verbo “passar” aproxima as duas peças, que tematizam, cada uma a seu modo, duas musas: “Pagu tem os olhos moles / uns olhos de fazer doer / Bate-coco quando passa. / Coração pega a bater. / Eh pagu eh !…”.
Nenhuma lacuna pode macular trabalho de tamanha importância mas, numa desejada reimpressão, Augusto Massi,poeta sensível e pesquisador de primeira linha, poderia nela incluir o pequeno volume “Vida e Morte da Antropofagia”,que conheço na edição de 1977, da Civilização Brasileira. E que se define mais apropriadamente como prosa de invenção e não como livro de memórias ou ensaios. É peça fundamental para se compreender os anos 20 e “Cobra Norato”. E possui valor estético em si mesmo, por romper gêneros. Caberia igualmente a inclusão dos depoimentos de Tarsila do Amaral a respeito de Bopp. Tarsila, ao lado de Mário e de Oswald, foi seu “guru” — quem lhe deu segurança para que trilhasse os caminhos da inovação e invenção. Num plano internacional, pouco explorado pelo organizador, o que se justifica num primeiro momento, trabalharia as relações de Bopp com o movimento expresionista, em artes plásticas, e com os poetas objetivistas norte-americanos, especialmente Lorine Niedecker (1903-1970) que, como ele, de ascendência alemã, ajudou a criar, ao lado de William Carlos Williams, George Oppen e outros, uma poesia de expressão americana, diversa da inglesa, mais coloquial, objetiva, centrada na nova realidade e no novos mitos: ” Fish / fowl / flood / Water lily mud / My life / in the leaves and on the water”. Poder-se-ia também estudar Bopp em comparação com, entre outros tópicos, as onomatopéias e mitos de “Altazor”, do chileno Vicente Huidobro.
Régis Bonvicino, maio de 1999