Dan Hanrahan
Ao anunciar o aumento da economia de consumo nos anos de 1930, o banqueiro Paul Maze do Lehman Brothers declarou: “Temos que desviar a América de uma cultura das necessidades para uma cultura dos desejos. As pessoas devem consumir inteiramente. […] Os desejos das pessoas devem encobrir suas necessidades”. Não há dúvida de que é isso que aconteceu, não apenas na América, mas no mundo todo. A publicidade e o comércio têm “criado desejos” durante décadas. Mas se o objetivo de se criarem desejos é o de vender mais produtos, o que acontece com esses produtos, suas embalagens dessa e nessa infinita proliferação de vendas? O que acontece com os produtos de papel, de metal e – mais ubíquos e irredutíveis – os produtos de plástico? Eles acabam amontoados em barcaças, depositados em aterros e jogados nas ruas das cidades, criando novos panoramas de lixo e de sujeira. E o que acontece com aqueles sujeitos deslocados ou deixados para trás nessa economia de desejos forjados? Muito frequentemente acabam vivendo no meio desses refugos, expostos às intempéries.
A nova coleção de poemas de Regis Bonvicino A nova utopia – gravada em áudio com Rodrigo Dário como produtor – retrata justamente essas paisagens e as pessoas relegadas a viver lá em versos que são ao mesmo tempo duros e profundamente evocativos, ásperos e carregados de uma compaixão abrasiva e intoxicante.
A questão de como apresentar o verso falado de um poeta continua sendo um desafio.
O melhor rap consegue o feito quase milagroso de intensificar a apreciação do ouvinte tanto no que diz respeito à poesia quanto à música, como se cada um desses elementos acentuasse, de alguma maneira, os giros e as texturas do outro. Mas o verso dos raps é fortemente metrificado e definido pela rima. Como, então, acompanhar o verso livre que, ocasionalmente, evolui para breves episódios de rapsódia metrificada, como se dá nos poemas de A nova utopia?
Dário se vale de várias estratégias extremamente eficazes. Tons dissonantes surgem, numa textura que os sustenta e os modula. Eles caem e se recompõem. Eles formam a malha sobre a qual frequentemente as palavras de sentimentos tácteis de Bonvicino podem pairar, ser rebatidas ou derrubadas. Dário altera inclusive a velocidade do verso. A voz que grava é acelerada ou ralentada; ela encontra certas disfunções que fazem com que uma frase venha a ser repetida, às vezes numa forma alterada. Esta tática impede que o ouvinte se ache num estado de consumação passiva. É um toque brechtiano, como se alguém nos dissesse: isso é um poema, e os modos como ele pode ser lido e recebido são infinitos. Fique alerta, não o abandone.
Muitos dos poemas são apresentados pelo poeta que os recita desacompanhado. Como performer de poesia Bonvicino é formidável. A cada palavra expressa somos capazes de perceber seu peso sônico, sua textura, suas evocações. A voz de Bonvicino tem um tom baixo e ressoa como se fosse de uma câmara. A presente coletânea é constituída por 17 peças, sendo que três delas são lidas pela soprano Caroline De Comi. Seu tom de voz mais alto contrasta com o de Bonvicino, grave e baritonal, produzindo um sensível efeito. De Comi recita “Notícias da Síria” acompanhada pelo alaúde de Rajana Olba, e o contraste que há entre o som plangente desse solo do instrumento de cordas e os sons sintéticos compósitos criados por Dário confere à coletânea um equilíbrio que consegue captar a atenção do ouvinte até o fim.
Dan Hanrahan é poeta, músico, dramaturgo e performer. Ele vive em Chicago.
POEMS FOR ANTHROPOCENE LANDSCAPES
Dan Hanrahan
Heralding the rise of the consumer economy in the 1930s, Lehman Brothers banker Paul Mazer declared, “We must shift America from a needs to a desires culture. People must be trained to desire, to want new things, even before the old have been entirely consumed. … Man’s desires must overshadow his needs.” Indeed, this is what came to be – not only in America, but around the world. Advertising and marketing have “created desires” for decades. But if the point of creating desires is to sell more products, what happens to the products and their packaging after this infinite proliferation of sales? What happens to products of paper, of metal and, most ubiquitously and irreducibly, plastic products? They wind up in heaps on barges, languishing in landfills and settling in the streets of our cities – creating new landscapes of junk and filth. And what happens to those displaced or left behind in this economy of forged desires? They often end up living among this trash, exposed to the elements.
Regis Bonvicino’s new collection of poems A nova utopía – recorded for audio release with producer Rodrigo Dario – depicts these landscapes and the people consigned to live in them in verse that is both stark and deeply evocative, harsh and charged with compassion, abrasive and intoxicating.
The question of how best to present a poet’s spoken verse is one that continues to challenge. The best rap achieves the near miraculous feat of highlighting the listener’s appreciation of both the poetry and the music, as each element somehow accents the turns and the textures of the other. But rap verse is highly metered and is defined by rhyme. How, then, to accompany free verse that occasionally evolves into brief episodes of metered rhapsody, as in the poems of A nova utopia?
Dario employs various highly effective strategies. Dissonant tones arise, sustaining and modulating in texture. These tones decay and recompose. They form a mesh upon which Bonvicino’s frequently tactile-feeling words can hover above, bounce off of or fall down upon. Dario also alters the velocity of the verse. The voice recording is sped up or slowed down; it encounters glitches that cause the occasional phrase to repeat, sometimes in altered form. This tactic prevents the listener from entering into a passive state of consumption. It is a Brechtian touch, as if we are being told this is a poem and the ways in which it can be read and received are infinite. Stay alert, stay with it.
Several of the pieces feature the poet reciting unaccompanied. As a performer of verse, Bonvicino is formidable. With each word declared, we are able to experience its sonic weight and texture and its evocations. His voice has a low tone and resonates as if from a chamber. The collection has 17 pieces and three are read Caroline de Comi. Her higher pitched voice offers an effective contrast to Bonvicino’s gravelly baritone. De Comi recites “Noticias da Siria”accompanied by the oud, played by Rajana Olba, and the contrast between the mournful sound of this solo stringed instrument and the dirtier synthetic sounds created by Dario give the collection a balance which permits the attention of the listener to remain rapt throughout.
Dan Hanrahan
Chicago, September 2022