Domingo, 25 março de 2007
O Estado de S. Paulo, CADERNO 2
PALAVRA-PORRADA CONTRA OS CONTENTES
Wilson Bueno
Página Órfã reúne 52 poemas de Régis Bonvicino, que revolve as dores dos seres à margem de um sistema feroz
Nem sempre a moderna poesia brasileira consegue ‘dizer’ o que pretende, por mais esforçados os protagonistas da cena lírica da Terra de Santa Cruz. Com as ralas, e ainda assim altas exceções de praxe, os poetas tupiniquins, sobretudo os das novas gerações, de ordinário se perdem num canhestro cipoal ‘esteticista’ quando não de insignificâncias e/ou gritantes medianias.
Este não é seguramente o caso do poeta Régis Bonvicino, 52 anos, que no recém-lançado Página Órfã, sua décima reunião de poemas, traz a público a produção dos últimostrês anos (2004-2006). Com tão extenso quanto acordado posfácio de João Adolfo Hansen, integram o livro 52 poemas de altíssima fatura. Com a garantia de qualidade que é, sem erro, a grande marca de Bonvicino – seja no trabalho ensaístico e de tradução, ou em sua já provada e comprovada vocação poética.
Não poderia ser diferente com este Página Órfã. O poeta, no permanente diálogo que estabelece com o que há de mais cosmopolita na produção literária de nossa insensata contemporaneidade, volta, não sem brilho, ao tema recorrente em sua poesia – aquele que se dá no que Hansen classifica com muita propriedade de junkspace, o espaço-lixo da moderna produção urbano-capitalista. Farpa e lixo: ‘Ligue suas palavras/com língua e agulha/esmague a farpa do anzol/e pesque à pluma.’
Não esperem de Bonvicino a ‘palavra-anágua’ nem o barroquismo luxuriante de certas vozes da moderna poesia brasileira de alto coturno. A dicção do poeta paulista é a de uma crua e nua isenção alegórica. Um murro, a palavra-porrada a se opor ao coro dos contentes.
No espaço-lixo denunciado por Hansen, em extensivo paradoxo, a poesia bonviciniana, algumas vezes lírica por excelência, revolve, por contraste, monturos infectos e semáforos nervosos, viadutos-em-abismo e outdoors de tão magnificente quanto cegante colorido. As cidades do mundo capitalista – e não há outro que o substitua – chegam a feder na poesia de Régis, pelas flores de esgoto que lhes crescem à margem; sempre à margem.
Importante anotar, aliás, a intensidade com que os poemas do autor, sobretudo os deste admirável Página Órfã, estão à margem. No amplo sentido expressivo de tudo o que a cidade dos ricos, numa ‘ética’ velada e igualmente marginal, foi afastando e empurrando para um outro lixo, este modelar e periférico – o lixo-excremento dos pobres, dos humilhados e ofendidos. Como em Tambor de Mina: ‘Há cacos de vidro na comida todos os dias.’
Deste modo, impossível detectar um só verso que não esteja comprometido com a verdade última do humano, do demasiadamente humano dos postos de lado, dos chutados das lanchonetes, das ‘Genis’ que se perdem, se matam e sucumbem ao rugir da urbe insana. ‘Pauladas não há palavras/morto a pauladas não há palavras/para dizer morto/a pauladas.’
Os silêncios da sintaxe que, como num jogo de sombra e luz, ora se ocultam e ora se revelam em aturdida estridência, redesenham os poemas de Página Órfã, o qual, sem exagero, já nasce clássico, pelo que aposta em uma nova visada sobre o fazer poético neste País de falastrões e poeteiros mediocrões. Régis Bonvicino não se curva – nem ao beletrismo barato em que se converteram os poemas-artefatos, diluidores tardios da herança concretista de mais de meio século, nem à poesia fácil dos poetrastos discursivos e sentimentalóides que ainda grassam, e como!, no sanatório das letras pátrias.
A sua é uma poesia em diálogo constante com o que há de essencial sobretudo entre os poetas norte-americanos de nosso tempo, a exemplo de Robert Creeley ou Charles Bernstein onde o paradigma é a ruína em que afundamos, numa espécie de viagem sem volta, os errantes seres que habitamos as feéricas cidades dos homens.
Modelos, umbigos, biquínis, estupros, parabólicas, celulares, caçambas, poluição, aquecimento global, spray, purpurina, mijo, infecções, reinfecções, sucatas, fezes, cocaine, white and black trashes, Cabul e Bagdá, nada se salva – e nem pretende que o seja – em Página Órfã. Denúncia corrosiva de que só a literatura é capaz e está habilitada a fazê-lo pelo que, na palavra, é sedição e engulhos, único instrumento capaz do grito ainda que o silêncio da indiferença impere e insista.
Mesmo num poema aparentemente ‘inofensivo’ como O Elefante, para ficar neste exemplo, já que os exemplos se multiplicam, Bonvicino não perde a ‘deixa’ nem a rima – nas cidades do novo milênio ‘não há tempo para limpar os mortos’. Com Bernstein, em assumida ‘poetry’s action’, Régis tem a suprema ousadia de grafar todo um poema em inglês para ‘definir’ o ‘Brazil’ movido por um verso-anátema, simbólico até a essência e esclarecedor: ‘Brazil is a jungle with snakes who eat cakes.’
Nem precisa entender inglês para saber o quanto isto tudo é verdade…
Em três momentos ‘petróglifos’ ao longo do livro, Bonvicino pontua a inscrição-caverna, a inscrição-grafito que a chuva lava dos muros do espaço urbano pós-moderno onde a antiarquitetura é que dá o tom. Morar e morrer sob viadutos – eis a sina ‘estética’ dos marginais que a grande cidade abriga e cospe, cospe e abriga, numa dialética perversa e deletéria.
Música, a meu ver uma das mais impactantes composições de Página Órfã , talvez possa funcionar aqui como um ‘tease’, o chiste que faltava, melhor ainda que o poema que dá título ao livro. Chiste sinistro, mas ainda assim chiste, ali onde a música é outra e outra a dança – instrumentalizada pelo suplício e o invasivo ‘pop sound’ – querela e quebranto de Bagdá a Guantánamo & suas grades – hórridas câmaras-escuras.
Assim, aqui em precários fragmentos: ‘(…)/num quarto sem luz/(…)os prisioneiros de guerra árabes/ do exército americano/ ouviam/ ‘Te estrangulei até a morte,/ depois quebrei tuas pernas’/(…) apesar do ruído branco/durante os interrogatórios/nada falavam’.
Com Página Órfã, desnecessário acrescentar, Régis Bonvicino se coloca como um dos mais maduros poetas brasileiros da atualidade. Saber e sabor, não fosse trágico o ‘junkspace’ das cidades do tumultuário novo milênio que nos foi dado conferir – ao vivo e em cores.
Wilson Bueno, escritor, é autor, entre outros livros, do romance Amar-te a ti nem Sei se com Carícias