PÁGINA ÓRFÃ (2007)
Ilustração: Osgemeos
AQUELOUTRO
Dizem que sou um dúbio mascarado
Um falso atônito
– que fala sem tom nem som –
que nunca deu sequer um berro ao Ideal
Um ingrato,
arrotando disparates “avant-garde”
Um irascível, mau-caráter
Um filho da puta, desleal,
asco de vômito
Um gelado, que passa ao largo
de cadáveres atropelados
*
Me mato todos os dias de um modo homeopático
Loquazes, gárrulos!
IT’S NOT LOOKING GREAT!
Cocaine, Kate
it’s not looking great!
a Chanel deu aquele troco em você
a Burberry um adeus!
você precisa de uma ama-de-leite!
Desatenta, anoréxica
fumante, atéia
ateou fogo em sua carreira
pare de incensar esses merdinhas dos Strokes
sua filha se chama Lila Grace!
você está sozinha
hoje, numa clínica do Arizona
fora da plêiade!
as curvas de Karolina Kurkova
Diana Dondoe
devastadora, na capa da Vogue
the myth of fashion made flesh
a beleza camaleônica de
Amber Valletta
o sutiã de diamantes de Giselle
Tudo ruiu, Kate
vá para o inferno
ou para um mosteiro
rasgue seus cartões de crédito
a H&M trocou você
por Mariacarla Boscono
bella ragazza sexy
do calendário da Pirelli
que fazia boquete nos bosques
aceite!
a raggazza de Givenchy e do Cavalli
agora também da Stella McCartney
Siga, sentindo-se “drácula”!
Sua mosca cosmopolita!
Cocaine Kate,
it’s not looking great!
AGONIA
Uma gaivota rente ao mar
voa entre os barcos
no pôr-do-sol
toca
asas na água
sem o peixe
voando em círculos
perto da árvore
em bando barcos parados
a voz da gaivota,
aguda, ecoa
rumo ao mar
fechado, mergulha
imersa, agora como ostra
destroça o peixe
entre as patas gaivotas a lua?
na água que apagou
nuvens sobre a montanha
onde já é quase noite
acima um céu azul ainda
horizonte uma gaivota voa
luz acesa da ponte
silêncio íntimo da baía
cor no entanto a onda
EXTINÇÃO
O lobo-guará é manso
foge diante de qualquer ameaça
é solitário
avesso ao dia, tímido
detesta as cidades
para fugir do ataque
cada vez mais inevitável
dos cachorros
atravessa estradas
onde quase sempre é atropelado
onívoro, com mandíbulas fracas
come pássaros, ratos, ovos, frutas
às vezes, quando está perdido,
vasculha latas de lixo nas ruas
engasga ao mastigar garrafas
de plástico ou isopores
se corta e ou morre ao morder
lâmpadas fluorescentes
ou engolir fios elétricos
morre ao lamber inseticidas
ou restos de tinta
ou ao engolir remédios vencidos
ou seringas e agulhas
descartáveis
dócil, sem astúcia,
é facilmente capturado e morto
por traficantes de pele
quando então uiva
LETRA
Nine out of ten computers are infected
Leminski morreu
do uso contínuo
de um coquetel
de álcool, cigarro e drogas
às vezes
de álcool puro e Pervitin
pupilas dilatadas para encarar o nada
às vésperas da morte
fétido
camiseta cavada e chinelos
trapos a pele
verde como vômito
arranhando o violão e traduzindo Beckett
getting a tan without the sun
que o futuro o disseque
( … numa outra década,
guerrilha nas favelas,
Kaetán morreu de uma overdose
de dólares
êxtase de cheques,
abanando o leque
um séquito de adeptos)
nine out of ten computers … are infected
para Alcir Pécora
O LIXO
Plásticos voando baixo
cacos de uma garrafa
pétalas
sobre o asfalto
aquilo
que não mais
se considera útil
ou propício
há um balde
naquela lixeira
está nos sacos
jogados na esquina
caixas de madeira
está nos sacos
ao lado da cabine
telefônica
o lixo está contido
em outro saco
restos de comida e cigarros
no canteiro, sem a árvore,
lixo consentido
agora sob o viaduto
onde se confunde
com mendigos
O SONO
Durmo acordado
acordo dormindo
a manhã não é manhã
acordo súbito
sempre
é um sono entre dentes
com vasos de férulas
no criado-mudo
durmo me matando
acordo de ressaca
engolindo o estômago
não durmo
o sono não se inicia
a cabeça me soletra
pesadelos
ouço a música
de um banjo
feito de uma lata opaca
durmo com medo
de não dormir
de acordar abrupto
vivo em estado de vigília
insônia ínsita
a me fertilizar narciso
a insônia é vício
pulsos cortados
gilete, comprimidos
irrompe um suicídio
qualquer coisa me invade
o sono não existe
preciso fumar mais
um cigarro
musgo viscoso da memória
escolhido a dedo
a memória me molesta
desleal, pesada
o sono é pisadeira
durmo acordado
acordo letargo
e a noite pisa em mim
para Nayra Ganhito
ROUPOEMA
Seus dentes poderiam fazer merchandising
de maconha
embora façam de Colgate
dos lóbulos caem pingentes
to sell ou vender
seus pés não pisam em piso falso
e andam descalços
num clip ou num filme
seus pés anunciam
uma sandália de plástico imputrescível
Vênus pu(t)ibunda
bebe de tudo, nos bastidores,
agora se parece às vezes
com um travesti
também
agora Hollywood está a seus pés
posa, cheia de si
se exibe com peitos de silicone
veste casacos, no inverno, de pele de lontra
ou de alguma outra espécie
sua cabeça está cheia de cocaína escondida
declara ter hobbies e entre eles
o predileto: fazer blow job
é mais asséptico, sob controle,
e poupa o clitóris
preservando o cheiro dos cosméticos
no corpo e nas roupas
nos lábios, botox
o nariz anuncia um perfume alegórico
de seus cabelos longos e ondulados,
caem letras cegas, se refletem flashes
de vez em quando, usa uma gargantilha
limpa sua própria língua
principalmente o dorso posterior
com um produto novo
para segurar o hálito
não vende roupa
vende os lábios
os lábios vendem a boca,
cornucópia de si mesma
ouve tecno e hip hop
digita no papelote
Não sabe escrever nada
Além do próprio nome
SEM TÍTULO
para Arkadii Dragomoshenko
Quase ninguém vê
o que eu vejo nas palavras
bizantino iconoclasmo
o relógio marca meia-noite ou meio-dia?
a Susi está em transe
ouvindo música
cha rá rá cha rô
teatro da ralé
o sol brilha através das árvores
num dia de outono claro
o Brasil é uma selva onde
cobras devoram tortas na rua
zmei ediat znanie
onde putos andam nus
sob a sombra de ocás
e usam a madeira
para fazer jangadas arcaicas
um muro sujo é uma sala vip
o sarcófago corroído de Chernobyl
um mendigo poluindo a calçada
pés sobre os sacos de lixo
caem painas do céu da cidade
um Infiniti FX passa,
em alta velocidade
AZULEJO
Meu pai e minha mãe
mortos
ninguém
algum
um
duplo
silêncio
ininterrupto
cacos ásperos
que, agora,
num ato de acúmulo,
rejunto
IN A STATION OF THE METRO
The apparition of these faces in the crowd;
Petals on a wet, black bough.
Abruptos tiras ocultos na multidão;
Tiros na nuca, um corpo espúrio no chão.
TAMBOR DE MINA
Há cacos de vidro na comida todos os dias
A ilha de Anjadiva está à deriva
Carpe diem,
carpe idem a rotina dos dias
Sex is sx
O esperma congelado dos mamutes
O uivo trêmulo revela tristeza e queixa
Há um movimento para liquidar os cães loucos na China
O basenji não late nunca
para também
surpreender suas presas nos terrenos aduncos
A parotia berlepschi ou ave do paraíso está quase extinta
Um pássaro, atingido por uma bala perdida
O picharro é cobiçado pelo tráfico
No Jardim do Éden,
há resíduos altamente enriquecidos de maçã
Dói-me a flor
A estrela resplandece pesadelos
Um dionísio corcunda, full love,
freqüenta o bazar das utopias
Uma prisca
Há um ranho estranho no nariz do executivo
Doe – como Lucky –
um kit de ossos de galinha,
sopa de açorda e agasalhos usados
para seus vassalos
O acúmulo de lixo irrita meu fígado
O reduto é – agora – pó e cinzas
A chuva inunda as ruas
A vodunce dança
uma dança que afasta como faca
o exu
Ligue suas palavras
com língua e agulha
esmague a farpa do anzol
e pesque à pluma