Paulo Franchetti
[Este breve texto foi publicado na revista Sem Fronteiras, v. 3, p. 133-134, 2010.]
Página órfã, décimo volume de poesia de Régis Bonvicino, é um dos melhores que li nos últimos anos.
Para quem não conhece a obra pregressa, esse livro é a boa introdução, pois representa o desenvolvimento consequente de um trajeto pessoal, que se construiu em combate ou aliança com as principais forças da poesia brasileira dos últimos 30 anos.
Lendo Página órfã, o leitor talvez seja levado a sentir que a contemporaneidade numa grande cidade, onde pulsa o coração do tempo, tem a forma de um vazio obscuro que cobre o mundo e que rebaixa tudo, inclusive o poeta. Mas aí reside a qualidade dessa poesia: não há cedência em falar do fácil, nem recusa em falar do difícil. Os poemas presentificam o horror, não o descrevem, nem o explicam. E o fazem também por meio de um sistemático confronto entre o que é e o que foi ou poderia ter sido. A natureza – as flores cultivadas, os animais maltratados pela expansão da cidade – e a civilização regem um vocabulário, uma sintaxe tensa, na qual nem mesmo a nostalgia e a ternura deixam de ter lugar, junto com o pasmo, o nojo e a recusa.
O procedimento que mais chama a atenção ao longo do livro é a montagem crua e violenta. Há algo de ready-made de jornais e notícias de TV e a justaposição de frases brutais e incisivas não deixa espaço para a ironia. Tampouco a justaposição do novo, do gasto e do arcaico busca a pacificação ou a alegoria tropicalista – apenas produz a imagem do desajuste da sensibilidade, que reage contra o caos.
Sem vocação proselitista, essa poesia não visa a promover a solidariedade, nem aceita o rebaixamento de reduzir-se à pregação política. Não corteja os donos da esquerda, nem se voluntaria para catequizar ou seduzir a massa. Nem cede ao apelo pop, recusando, até onde lhe parece possível, a forma de mercadoria. Essa poesia não procura tampouco ficar do lado de fora, não é nefelibata. Pelo contrário, situa-se decidida no miolo do presente, cuja forma é uma figura de muitas faces: a moda e a barbárie, o comércio e a guerra, a devastação e a sobrevida possível, o individualismo extremado e a eliminação da individualidade. A indignação e a impotência, porém, nunca se traduzem como desistência da poesia.
Por estar sujeita às tensões do presente, alguma crítica julgou que o essencial em Páginaórfã é a “poesia política” – dando, nessa expressão, muito mais peso ao segundo do que ao primeiro termo. Deliberado ou não, é um erro. Identificar ao longo de Páginaórfã uma série de fragmentos que tratam da violência, da guerra e do extermínio para depois interpelar o livro como se ele fosse um artigo de fundo de jornal é a forma mais eficaz da não leitura, da redução do novo ao velho e do imprevisto ao já conhecido. O que o livro traz de interessante não é nenhuma tese – e nem há qualquer tese nele. É o registro do choque do que chamamos “realidade” sobre uma sensibilidade alerta; e a capacidade de, a partir desse choque, produzir com palavras um objeto denso, rico de imagens, combinações sonoras – um objeto que dialoga tensamente com a tradição e dela se alimenta, ainda quando a agrida ou denegue.
O mais interessante nessa poesia (como na poesia em geral) não é a sua capacidade de formular conceitos, nem de dar explicação do mundo; muito menos de incitar à revolução ou propor formas de transcender a realidade das classes. A poesia, na nossa tradição, é justamente aquele tipo de discurso que resiste mais radicalmente a ser reduzido a uma paráfrase, a um conteúdo que depois seja contraposto ou comparado ou identificado a outros conteúdos. Embora a poesia possa também reduzir-se a uma variante da propaganda, um rebaixamento da filosofia ou uma ilustração de teses sociológicas, sua importância – aquilo que a justifica como um discurso específico – provém do seu poder de presença. O seu sentido não se separa da forma específica de cada verso, da natureza e combinação das imagens, da sucessão e modulação dos tons e das várias atitudes líricas que se contrapõem ao longo de um único poema ou de um volume inteiro. O poeta sabe disso. Num texto de Páginaórfã, intitulado “Prosa”, lemos: “Um poema não vive além de suas palavras”. Era preciso registrar essa lapalissada? Aparentemente não, pois para quem sabe ela é desnecessária e para quem não sabe é um lembrete inútil, já que a crítica de primeira hora recebeu o livro pedindo mais: que o poema não só vivesse, mas se explicasse além das suas palavras. Foi uma demanda rala para um livro tão denso. Ela esgotou-se, porém. Ele perdura.
Régis Bonvicino. Página órfã (2004-2006). São Paulo: Martins, 2007