Uma nota de 1992 sobre Os cus de Judas (Lisboa, Vega, 1979), de António Lobo Antunes (nascido em 1942), estampada no jornal português O Público, asseverava, com razão: “É impossível transmitir, num curto resumo, uma pálida noção sequer do tecido denso e engenhoso deste livro”. Este resenhista está, portanto, diante de um desafio e muito próximo do fracasso: tentar descrever e decifrar, ao menos um pouco, esta obra-prima. O relato foi escrito em 1979 e retrata o período (1971-73) em que o autor, um médico de profissão, esteve em Angola a serviço do exército português, que combatia a guerrilha de libertação da colônia, liderada pelo mpla (Movimento Popular de Libertação de Angola). Lobo Antunes transforma-se em personagem de si mesmo para criar uma das narrativas mais “densas e engenhosas” que já se escreveu na língua de João Cabral de Melo Neto, ou em suas próprias palavras: “descobri-me personagem de Beckett aguardando a granada de morteiro de um Godot redentor”. Antunes filia sua originalidade à tradição européia do romance, que vai de Kafka a Camus, a explorar a condição arbitrária ou absurda da existência humana de modo amargo, sem o humor de um Ionesco.
Antes de entrar no relato em si, é preciso dizer que a República portuguesa, fundada em 1910, no dizer de Kenneth Maxwell, “nunca obteve o consenso popular”. E ainda: “Ao legalizar a separação entre Igreja e Estado, agradou os portugueses urbanos, mas enfureceu a população rural do Norte”. Tal quadro de insatisfação levou os militares a decidir que o “experimento” republicano deveria ser substituído por uma ditadura, e foi então que, em 1928, António de Oliveira Salazar chegou ao poder, para, em 1930, “assumir o controle absoluto do país”, até seu “coma” em 1968. Maxwell afirma que o Estado Novo salazarista era “um regime autoritário católico”, que equilibrava interesses concorrentes e se fazia avesso à industrialização, para evitar, em Portugal, o nascimento da luta de classes. A guerrilha angolana se iniciou em 1961, sob o influxo da libertação das colônias inglesas e francesas, modelo do qual Salazar se afastara em virtude de, nas palavras de Maxwell, “sua intransigência na defesa do Império”, mesmo que ao custo altíssimo de se alienar do mundo contemporâneo do ponto de vista econômico.
Os cus de Judas foi escrito já sob o governo da parelha almirante Américo Tomás e Marcello Caetano, fiéis seguidores de Salazar. O título explica um pouco o livro. Judas, de Judas Iscariotes, é, por antonomásia, o traidor. Nos tempos de estudante, Lobo Antunes combateu a ditadura salazarista, e o romance, em muitos momentos, relata essa traição a si mesmo, do estudante que se formou médico, culturalmente bem informado, e acabou por servir, por questões de sobrevivência, aos ideais da ditadura. Esse conflito aparece do começo até a metade do livro no corpo da linguagem, repleta de menções cultas europeizantes. Veja-se a seguinte descrição dos feridos de guerra, socorridos pelo médico: “e dezenas de larvas informes principiavam a surgir, manquejando-se, arrastando-se, trotando-se […], larvas de Bosch de todas as idades”.
Outro dos traços deste livro é a violência na linguagem, e não na descrição externa das cenas de guerra e do choque de repertório cultural vivido por um médico lisboeta, cosmopolita, atirado de súbito na selva da guerrilha e da África. Leia-se: “Ninda: o milho encostado ao arame folheava toda a noite as páginas ressequidas, o feiticeiro sorvia o pescoço das galinhas degoladas numa velocidade brutal”. Ou: “a quem, no Natal, ofereciam através do prior […] fatias de bolo-rei, palavras evangélicas e medicamentos fora de prazo, rodeados de filhos, de piolhos e de gritos, personagens de Vittorio de Sica à deriva no Pátio das Cantigas”. À medida que o tempo passa e Antunes segue na África, emerge uma crise de identidade, que aparece na própria narrativa, que vai abandonando as referências cultas (que reaparecem em flashback, quando ele relata seu retorno definitivo a Lisboa e, antes, quando conta melancolicamente sua separação da mulher e da filha – nascida quando ele estava em Angola), para se tornarem apenas brutas, desesperadas, terríveis, o que ocorre do meio ao final do volume. Ou como Antunes formula: “Flutuo entre dois continentes que me repelem, nu de raízes”. O livro não deixa de lembrar, no argumento, Profissão: repórter (1975), de Michelangelo Antonioni.
A partir do capítulo M (o livro é composto em capítulos que vão de A a Z), onde Antunes descreve seu encontro sexualmente fracassado, por sua culpa, com uma hospedeira da tap, a violência da linguagem se intensifica ainda mais e explode nas cenas e na guerra, também psicológica: “Pousei o copo numa mesa de bambu onde o umbigo de um buda pantagruélico estremecia gargalhadas de loiça, e o tilintar dos cubos de gelo trouxe-me à lembrança o sino que comprara para o berço de minha filha”. Nesse passo, outro aspecto a ser observado é a construção poética de Antunes, que, embora escreva em longos parágrafos de quase uma página, compõe dentro deles verdadeiros poemas, numa tradição que remonta a Camilo Pessanha, Cesário Verde, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, ou seja, à vanguarda portuguesa dos séculos xix e xx. Cito apenas uma linha, mas poderia transcrever centenas: “[…] esperando dentro do carro numa impaciência de cigarros”. Mas, como disse, a brutalidade da narrativa ante a persistência da guerra, além de se transformar em monólogos paranóicos com lâmpadas no “tecto” ou em masturbações solitárias, revela-se fúria: “Prezado Doutor Salazar se você estivesse vivo e aqui enfiava-lhe uma granada sem cavilha pela peida acima”; ou: “o que restava da garganta cessou o seu borbulhar ansioso”.
Os cus de Judas, praticamente o livro de estréia de Antunes, ao lado de Memória de elefante (Lisboa, Vega, 1979), constitui-se numa reflexão a respeito do imobilismo e da decadência portuguesa e uma dura crítica a seu “sebastianismo”, a seu imperialismo fantasista, atrasado. Por outro ângulo, essa narrativa feita por um autor/personagem e dirigida à mulher que ele deseja seduzir é, como se pontuou, cheia de achados poéticos e detalhes que a tornam inesgotável. Até o Brasil não passa despercebido: o país aparece em duas ocasiões, uma em Angola, onde fazendeiros angolanos brancos e ricos importam prostitutas brasileiras, e noutra quando, em Lisboa, só, já sem a mulher, retornado da guerra, o autor ouve um “cassete de Maria Bethânia”; é o “cartão postal” de sempre do “país do samba e do futebol”. Em 25 de abril de 1974 irromperia a “Revolução dos Cravos”, que libertaria Portugal do fascismo anti-industrializante, que já não fazia sentido para as potências econômicas do mundo; dois anos depois, Angola tornar-se-ia independente, tendo como capital Luanda. Até hoje Os cus de Judas é um livro de leitura atualíssima (o novo que permanece novo) e imprescindível.