Embora notícia em todos os jornais brasileiros, o relançamento de Ocão sem plumas (1950) e o lançamento da antologia O artista inconfessável, de João Cabral de Melo Neto, ambos pela Alfaguara, no final de 2007, não foram objeto de nenhuma análise crítica, como se clássicos não fossem passíveis de releitura. Sintoma de que a crítica desapareceu, como já alertava Nelson Rodrigues em 1972: “Hoje, no Brasil, não há mais crítica literária. Eu não incorreria em nenhum exagero se dissesse que aí está um gênero morto e enterrado […]. Se me permitem, direi mais o seguinte – não há crítica literária e, pior, nem literatura”. João Cabral de Melo Neto, apesar de morto biologicamente desde 1999, está mais vivo do que 100% dos poetas brasileiros biologicamente vivos – é muito superior a Ferreira Gullar, a Augusto de Campos, a Affonso Ávila, a Décio Pignatari, para ficar com os mais velhos, porque, entre os mais novos, praticamente nada há, a não ser autopromoção.
Ater-me-ei à antologia O artista inconfessável, organizada por sua filha Inez Cabral, que dialoga com a antologia Poesia crítica, organizada pelo próprio Cabral em 1982, com capa de Inez. O cão sem plumas foi escrito no período em que Melo Neto viveu em Barcelona (1947-50) e participou do movimento de vanguarda Dau al Set, ao lado do poeta Joan Brossa, do crítico Arnau Puig e dos artistas plásticos Joan Ponç, Antoni Tàpies e Joan Miró. Aliás, Cabral foi o único artista brasileiro a participar de um movimento de vanguarda de projeção no exterior.
É preciso dizer que, como o autor de A educação pela pedra (1966) possui a obra mais homogênea da poesia brasileira, , no aspecto da qualidade, qualquer antologia que se lhe faça será de alto nível – o que ocorre com O artista inconfessável. O poema que se transforma em título dessa nova antologia está igualmente incluído na outra, e há ainda outros em comum, como “O que se diz ao editor a propósito de poemas”, “O autógrafo”, “Coisas de cabeceira, Sevilha”, “O poema” e alguns outros. A diferença fundamental é que Inez Cabral procura desconstruir os clichês que se ergueram, como barreiras, em torno da obra de seu pai: poeta hermético e difícil, para a leitura de uns happy few. Ela divide o livro em seções: 1. Infância e Juventude; 2. Viagens; 3. Sevilha, Espanha; 4. Recife, Pernambuco; e 5. Retrato do Artista, para criar uma autobiografia do pai, por meio de seus poemas. O título poderia ser O artista confesso! Este é um dos méritos da organização.
Dispara, por outro lado, um míssil contra a crítica estruturalista, que o enredou excessivamente em teorias, e contra os próprios críticos pernambucanos, entre eles Luis Costa Lima (convicção minha), que o tornaram mais ilegível ainda (em virtude de suas interpretações pomposas e rebarbativas, repetidas infinitamente a alunos), num determinado momento da recepção de sua obra – o que até se compreende, diante da complexidade simples e extremamente inovadora de Cabral. Aliás, a mensagem é clara: leia João Cabral, e não seus críticos, ou leia primeiro sua poesia. As seções vêm acompanhadas de fotografias, o que torna mais inteligível a menção, por exemplo, que o poeta faz aos engenhos de sua infância, como Poço e Pacoval – este seu predileto: “preferi sempre o Pacoval: a pequena Casa-Grande de cal,/ com telhados de telha-vã/ e a bagaceira verde e chã/ onde logo eu e meu irmão/ fomos a um futebol pé-no-chão”.
Como observa o crítico espanhol Nicolás Extremera Tapia, a poesia de Cabral é feita de dualidades: vida/morte, mineral/vegetal, Pernambuco/Espanha, abstrato/concreto. Essas dualidades, óbvio, estão presentes em O artista inconfessável, que se inicia com “Dúvidas apócrifas de Marianne Moore”: “Sempre evitei falar de mim,/ falar-me. Quis falar de coisas./ Mas na seleção dessas coisas/ não haverá um falar de mim?”. Uma das dualidades mais tensas e explosivas de toda a sua poesia aparece no poema subseqüente, “Autobiografia de um só dia”, no qual “fala” de seu nascimento, interferindo a posteriori no parto, no Engenho do Poço: “e se soubesse o que teria/ de tédio à frente, abortaria”.
O livro é clara autobiografia linear, montada pela cineasta Inez Cabral, como um filme tangível – decorre daí a importância das fotos inéditas e abundantes, que enriquecem o volume sobremaneira. E revela um João menos “cerebrino” e mais violento, palpitante e até brutal – ao contrário da imagem que lhe criaram. Leia-se “As latrinas do Colégio Marista do Recife”: “Lavar, na teologia marista,/ é coisa da alma, o corpo é do diabo;/ a castidade dispensa a higiene/ do corpo, e de onde ir defecá-lo”. Existe, entre os poemas, um deles que relata o retorno de Cabral ao cais do Apolo em Recife – poema de título homônimo, “Cais do Apolo”. Na juventude, fazia-se literatura “com muito beber de cachaça” e “onde há barcaças, barcaceiros,/ onde há escritórios, escrituras: de noite, de Rimbaud, das putas”; no retorno, ele verifica: “Muitos arranha-céus cresceram/ naquelas praias devolutas/ e os computadores que trazem/ dão com algum Rimbaud, se algum perdura”. O poema está em Agrestes, de 1985, e ressoa com a observação de Nelson Rodrigues.
Curioso é que seus poemas referentes às touradas tornaram-se politicamente incorretos, como “Alguns toureiros”. Há um movimento na Espanha denominado, em espanhol, Antitaurinos, que obteve vitórias judiciais, como a proibição de menores nas plazas. Eles têm um lema: “!Basta!/ La tortura no es arte ni cultura”. Morrem 11 mil reses por ano. Por fim, cabe uma nota sobre o poema que dá título ao livro. Um dos mais brilhantes de João Cabral, ele transcende a poesia, quando diz: “Fazer o que seja é inútil./ Não fazer nada é inútil./ Mas entre o fazer e o não fazer/ mais vale o inútil do fazer”. Expõe a condição permanente do brasileiro, sucateado pela corrupção governamental, por uma oposição de gabinete, por um serviço público imprestável e que, no entanto, insiste no “inútil do fazer”.