Novelas, de Samuel Beckett, reúne três textos provavelmente imaginados entre a parte final da Segunda Grande Guerra e a derrota do nazi-fascismo em 1945. Em julho de 1946, a revista Les Temps Modernes, dirigida pelos filósofos Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, editou um trecho de “O expulso”. Há dois fatos da vida de Beckett que seguramente estão inscritos nessas três novelas, a mencionada “O expulso”, “O calmante” e “O fim”. Em primeiro lugar, seu esfaqueamento em 1938, em Paris, por um mendigo que, visitado por ele na prisão, respondeu-lhe acerca da motivação do ato com um “je ne sais pas, monsieur”. Em segundo, sua participação na Resistência francesa, a partir do vilarejo de Roussillon, entre 1942 e 1945, onde, como observa Marjorie Perloff (em Wittgenstein’s ladder, Chicago, University of Chicago, 1996), aprendeu as técnicas do cut-out, que consistiam em deixar aflorar ao inimigo o mínimo de sentido lógico possível nas transmissões de mensagens aos aliados; ela dá como exemplo, entre muitos, a sentença “Moses did not exist”, da novela Watt (1953), como típica do cut-out. A observação vale igualmente para essas três outras “novelas”, obras-primas em si, impregnadas desse tipo de técnica, e que levam críticos afoitos a falar exclusivamente em “absurdo” e/ou “a escuridão de nosso tempo”, sem pensar nas limitações de representação da linguagem, um dos temas centrais do autor de Esperando Godot.
É correto, para não dizer óbvio, afirmar que Beckett explora a degradação humana, a perda da subjetividade e o esvaziamento do ser, traços encontrados nos três, por assim nomear, mendigos/personagens de “O expulso”, “O calmante” e o “O fim”; no primeiro texto, um “mendigo” é expulso de um asilo, no segundo, que remete a Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (sempre um pioneiro, em nível mundial), outro mendigo produz uma narrativa post-mortem, aparentemente onírica, e, no terceiro, no qual outro “mendigo”, a partir de uma espécie de “alta” que recebe de um asilo, também constrói um relato de sua busca por um lugar para se extinguir. Os três são monólogos amargos, distantes da ironia tal qual figura produtora de uma verdade.
Comecemos por “O expulso”, no qual o personagem tenta descrever a escada de onde foi atirado para a rua; de repente, no início da descrição, Beckett faz irromper o tema da linguagem: “No outro sentido, quero dizer, de cima para baixo, dava no mesmo, a palavra não é forte demais”. À insuficiência humana soma-se a insuficiência da representação poética. Fora do asilo, onde vivia aprisionado numa rotina degradante, o personagem ganha as ruas e vai se decepcionar com a “liberdade”: “Meu ardor juvenil, se o tinha, desgastou-se, tornei-me amargo, desconfiado, um pouco antes da hora, ávido de esconderijos e da posição horizontal”. Da “queda” da escada à posição horizontal, vegetativa, o mendigo, perambulando pelas ruas, se depara com a possibilidade da sarjeta: “Desejaria o senhor, disse eu, sem pensar um minuto em Heráclito, que eu desça para a sarjeta?”. Nesse texto, um cocheiro leva o desvalido para sua casa e o instala em sua cocheira, não sem antes chamar a atenção de sua esposa para a “pústula” que o visitante tinha na cabeça; leia-se a descrição do mendigo: “Deitado no escuro, eu ouvia o barulho que ele fazia bebendo, é muito especial, as bruscas carreiras dos ratos e acima de mim as vozes abafadas do cocheiro e de sua mulher me criticando”. A presença de “ratos canibais” vai reaparecer em “O fim”, no qual eles se transformam, ao cabo, em amigos íntimos do narrador em seu bote suicida. O “je ne sais pas, monsieur” do mendigo real que esfaqueou Beckett ressurge no final desse conto, agora como ficção: “Não sei por que contei essa história. Poderia muito bem ter contado outra”.
“O calmante” começa machadiano: “Já não sei quando morri” e/ou, logo depois, “Vou portanto me contar uma história”. Aqui, quero explorar, mesmo que de passagem, o uso da técnica cut-out, com frases curtas e abruptas, que, após a participação na guerra, Beckett passou a adotar com intensidade em seus trabalhos, para criar caminhos de rato à linguagem literária vigente e propor uma outra ordem de sentidos, uma “literatura outra”, com historicidade e universalidade ao mesmo tempo. Exemplos: “Ontem na verdade é recente mas não o bastante”, “morrer sem muita dor, um pouco, vale a pena…”, ou ainda, entre tantos exemplos, “palavras que levaria comigo, à minha cabana, para acrescentá-las à minha coleção”; todas as frases assemelham-se às mensagens codificadas de guerra; guerra, ou melhor, pós-guerra, que atravessa o cenário basicamente citadino dessas novelas, cenário devastado mais pela perversidade dos homens do que pelos ataques dos alemães: “uma boa noite de pesadelo e uma lata de sardinha me restituiriam a sensibilidade”. O narrador, declarando-se morto, relativiza seus pontos de vista e percebe que: “Minha sombra, uma de minhas sombras, lançava-se à minha frente, encurtava-se, esgueirava-se sob meus pés, arrastava-se atrás de mim, à maneira das sombras. Que eu fosse opaco a esse ponto parecia-me conclusivo”. Em “opaco” irrompe, além da questão evidente da perseguição e da paranóia, de novo o desejo do autor de deflagrar uma “literatura outra”, que, além de revelar os esvaziamentos do ser, revelasse a insuficiência da linguagem para representar tal tipo de situação, vívida e inédita. Num dos diálogos de “O calmante”, quando o personagem central encontra alguém que lhe pede para contar sua vida, a fala do mendigo real, que esfaqueou Beckett, manifesta-se novamente: “Mas como permaneci em silêncio, ele disse, quer que eu lhe conte a minha, assim compreenderá. O relato que fez foi breve e denso, fatos sem explicação”. Daí advém a questão do absurdo, mais do que do onirismo nessa novela, que se traduz na questão do arbitrário e do acaso como arbitrariedade opressiva. Como anotou Otto Maria Carpeaux, Beckett, em sua “teologia pessimista”, questiona a condição metafísica do homem neste mundo, ao qual veio sem ser consultado e sem saber para aonde vai. A novela termina de uma forma belíssima, negando a morte física e propondo uma “esquerda da morte”, como “o lugar” para aonde se deve ou se deveria ir.
“O fim” explora a história de um velho mendigo hipocritamente liberado de um asilo mediante paga. O velho estranha a cidade (“O rio me dava a impressão de correr no sentido errado”), que há muito havia deixado, e procura um novo “asilo”, que parece encontrar num porão de uma casa de uma grega-turca: “Eu estava bem nessa casa, devo dizer. Fora alguns ratos, eu ficava sozinho no porão”. Subitamente, o velho é despejado da casa e se vê vítima de estelionato por parte da mulher, o que o faz perambular de novo e esmolar nas esquinas. Numa delas, ocorre uma cena antológica, de ironia aberta em relação ao marxismo: “Ele gritava tão alto que trechos de seu discurso chegavam até mim. União… Marx… capital… bife… amor”. De repente, o orador se volta para as pessoas e aponta para o velho mendigo, nomeando-o como dejeto, velho, piolhento, podre, pronto para o lixo, para dá-lo como exemplo de alguém pertencente ao lumpenproletariat, a quem não se deve dar óbolos, mas ideologia, e conclui: “Não lhes passa pela cabeça […] que é servidão, o embrutecimento, o assassinato organizado, que vocês incentivam assim com suas dádivas criminosas?”. Em seguida, na narrativa, o mendigo acaba reencontrando um velho amigo, que o leva para uma caverna, à beira-mar, a partir do qual ele descobre, numa casa, um bote, onde passa a residir. Por lá, finalmente, o mendigo consegue extinguir-se num suicídio: “Até as palavras nos abandonam, não é preciso dizer mais nada”. No bote, com ratos canibais íntimos, cercado de gaivotas rapinando peixes e esgotos, o velho acaba esmagado por uma contração (sístole) do mar e diz: “Eu pensava vagamente e sem remorso no relato que por um triz não fiz, relato à imagem de minha vida, sem coragem de terminar nem força de continuar”. A publicação de Novelas é um tapa na cara dessa auto-ajuda disfarçada que é a prosa que se escreve hoje no Brasil.
Novelas
de Samuel Beckett
tradução de Eloísa Araújo Ribeiro, São Paulo, Martins Fontes, 2006, 82 p.