ENTREVISTA DE NANNI BALESTRINI A RÉGIS BONVICINO
Poeta, romancista e artista plástico, Nanni Balestrini nasceu em 1935, em Milão. Hoje, vive entre Roma e Paris. É um dos fundadores do Gruppo 63, que lançou os poetas Novíssimi no panorama italiano, no início dos anos 1960. Foi editor da Feltrinelli, uma das mais importantes casas editoriais da Itália. Publicou uma dúzia de livros de poesia, entre eles La aventure complete della signorina Richamond (Testo & Imago, 1999) e Sfinimondo (Bibliopolis, 2004). Igualmente, publicou uma dúzia de romances experimentais, entre eles Vogliamo tutto (Feltrinelli, 1971), Gli invisibili (Bompiani, 1987) I furiosi (Bompiani, 1994), sobre torcedores de futebol e, o mais recente, Sandokan, storia di camorra (Einaudi, 2004). Como artista plástico expôs em inúmeras galerias da Europa. Neste âmbito, publicou a coletânea Paesaggi Verbale, com prefácios e textos de Umberto Eco, Achille Bonito Oliva e Paul Virilio (Galeria Mazzoli, Modena, 2002). Nesta entrevista exclusiva, concedida por correio eletrônico, em agosto de 2005, aborda questões relacionadas ao seu percurso, à arte de vanguarda, à política, ao Império Americano e à inflação eletrônica da palavra.
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Régis Bonvicino: Sua experiência está voltada para a questão da vanguarda e, neste sentido, gostaria de saber o que pensa sobre a onda de experimentação e vanguardismo que tomou o mundo ocidental no pós-guerra?
Nanni Balestrini: As guerras sempre provocaram uma ruptura no processo normal e lento de transformação das idéias e dos comportamentos humanos. Desde as guerras napoleônicas do começo do século XIX até a Grande Guerra de 1914-18, na Europa, os conflitos têm sempre sido acompanhados pelo nascimento de novos modos de ver a realidade e de vivê-la. O fim da última Guerra Mundial (1939-45) redundou num enorme impulso para a pesquisa e a experimentação em todos os campos da arte, não apenas na Europa, mas no mundo inteiro.
RB: Quais eram os princípios básicos dos Novissimi e do Gruppo 63?
NB: A Itália tinha sido um lugar central das “vanguardas históricas”, iniciadas com o Futurismo, no começo do século passado. Os 20 anos de fascismo, no entanto, sufocaram a vida cultural, impedindo, sobretudo, as trocas com as experiências dos outros países. O Grupo 63 ( do qual fizeram parte os poetas Novíssimi) nasceu principalmente da intolerância e da recusa, por parte de uma nova geração, da tradição literária, que se mostrava incapaz de interpretar a nova realidade daqueles anos. Foi, essencialmente, um instrumento coletivo de busca de novas formas de escritura, adequadas às grandes transformações em curso.
RB: Esse grupo se relacionava com os Beatniks e Black Mountains nos EUA, com o OULIPO na França, com a Poesia Concreta brasileira?
NB: Uma das exigências imediatas e principais da nova geração foi a de retomar o diálogo com as situações de experimentação literária que, em outros países, haviam podido se desenvolver mais livremente, como a poesia experimental ( concreta, visual e sonora) ou o romance dito pós-moderno ( denominação que não considero exata). Alguns destes escritores foram convidados a tomar parte das reuniões do Gruppo 63 e isso contribuiu bastante para a formação de uma nova mentalidade na literatura italiana.
RB: Hoje, acredita que essa onda tenha criado algo de original ou que se manteve, no fundo, tributária às primeiras vanguardas do Século 20?
NB: Estou convencido de que os anos 1960 foram extraordinários para a literatura, as artes visuais e a música. Um período comparável ao Renascimento italiano, ao Siglo de Oro espanhol, ou ao Romantismo europeu, com a vantagem que, dessa vez, havia se desenvolvido em nível mundial. As primeiras vanguardas do século haviam sido um momento violento, de quebra, haviam marcado o começo da modernidade, o nascimento da sociedade industrial, o alvorecer de um novo mundo, o que vivemos em certo sentido hoje, para o bem e para o mal. Com o segundo pós-guerra, no entanto, foi tomando corpo uma nova dimensão da vida humana, que transformou radicalmente as relações (de trabalho, família, sexo) e instaurou o domínio da tecnologia e do consumismo, com suas contradições e seus conflitos.
RB: O conceito de vanguarda, combatido até hoje, faz algum sentido, estético, político ?
NB: Penso que os grandes momentos artísticos sempre foram de vanguarda, ou seja, de ruptura com uma tradição já gasta: Dante e Cervantes, Bach e Mozart, Caravaggio e Cézanne mudaram radicalmente a percepção da realidade de seu tempo e por isso permanecem sempre contemporâneos. A contraposição entre vanguardas consideradas episódios minoritários e o fluir de uma tradição main-stream não existe. A verdadeira tradição só pode ser a história das vanguardas, uma história descontínua de grandes obras que determinaram uma ruptura, um salto. O resto mesmo que pareça dominar o presente, não tem valor, é destinado a dissolver-se dentro de algum tempo.
RB: O senhor, que sempre teve uma atuação multimídia, como vê hoje a palavra, digamos, não eletrônica?
NB: As novas tecnologias produziram, no meu entender, um enorme, excessivo incremento da circulação da palavra, uma inflação da comunicação, tanto oral quanto escrita, e contra isso a literatura tem que lutar, hoje. Não creio que os novos suportes eletrônicos possam modificar a natureza da arte da palavra, como, aliás, não aconteceu substancialmente no passado, por exemplo, com a invenção da imprensa. Se há novas possibilidades na evolução da música e das artes visuais, isso ocorre porque o som e as imagens são digitalizáveis, decomponíveis em unidades mínimas, enquanto que a palavra tem a soleira do significado que não se pode superar (ultrapassar). Sondar as soleiras do significado das palavras e de seus conjuntos é a tarefa da literatura, da poesia. Mas os significados não são quantitativos, portanto, não são digitalizáveis, e isso afasta a influência nociva do meio eletrônico, na esfera da palavra. Os experimentos que eu fiz referiam-se, ao contrário, às possibilidades combinatórias do computador, que, porém, são apenas uma extensão e uma agilização das manuais. Penso, então, que, no que diz respeito à palavra, o meio não é a mensagem.
RB: Um de seus romances, I furiosi, trata do futebol. O senhor se interessa por futebol?
NB: O futebol não me interessa minimamente. Escrevi esse livro porque quis compreender o motivo pelo qual o futebol representa o maior fenômeno de agregação social entre jovens e adultos. É um livro sobre os torcedores, suas aventuras, para as quais o futebol não passa de um pretexto. O que conta para eles, sobretudo para os mais jovens, é viver com os amigos num grande festa coletiva, que os leve a esquecer a infelicidade do cotidiano, imposta pelo sociedade que vivemos, e a sonhar.
RB: Gostaria que falasse sobre o mundo atual. Como vê a questão do Império Americano e quais seriam suas conseqüências sobre a arte?
NB: O Império, enquanto máxima realização do poder, escreve a história, domina a economia e determina os modos de vida. O artista tem a tarefa de opor-se a estas hegemonias, não tanto e não apenas no plano político e existencial, mas criando uma obra em que a crítica e a recusa exprimam formas ( sons, imagens, palavras) antagônicas às do poder. E hoje o Império Americano, que nos oprime com sua ambição de domínio mundial, provoca a arte a dar vida a obras que tenham consciência destino do gênero humano inteiro.
RB: Gostaria que comentasse o slogan dos anos 1960: “guerra no, guerrilla si”, projetado para os dias atuais.
NB: As guerras, sempre ilegítimas, são os Estados que as fazem, com os exércitos. As guerrilhas são formas de defesa, de resistência informal contra os ocupantes ( como a dos partisans na Europa, sob o nazismo), ou então, se direcionam contra ditaduras e governos não liberais. Em ambos os casos, trata-se de oposição legítima, mesmo se, desde sempre, os ocupantes e as ditaduras têm usado o termo “ terrorismo” para recusar a legitimidade e tipificar como crime as oposições armadas. Cabe constatar, ao contrário, que o verdadeiro terrorismo é o que eles praticam contra populações indefesas. Mesmo o uso da violência e das armas, por parte de uma oposição, em situações democráticas, em estados democráticos, que permitiria um livre confronto político, penso que deve ser considerado ilegítimo e, portanto, definível como terrorismo também.
RB: O senhor militou na extrema-esquerda e conviveu com a luta armada. Como se pode hoje fazer a síntese entre revolução e arte?
NB: Pessoalmente nada tive a ver com a luta armada, que houve na Itália nos anos 1970, e, inclusive, com a maior parte dos movimentos de extrema esquerda de então, eu era contrário ao uso das armas. Considero que, além de um erro político, tenha sido ilegítimo pelos motivos que acabo de mencionar. Os espaços democráticos estavam fechados e estava se desenvolvendo um grande movimento popular de oposição fora dos partidos. Entretanto, um pequeno grupo, que se iludia com a idéia de obter uma vitória militar contra o Estado, permitiu que a repressão apagasse um decênio de lutas e que o rotulasse de “os anos de chumbo” do terrorismo. Não creio que exista uma relação direta entre arte e revolução, se estivermos nos referindo à revolução política. Esta é um processo que se transforma no tempo, que pode se tornar involução, como aconteceu com a revolução francesa e com a soviética. Ao contrário, as verdadeiras obras de arte permanecem revolucionárias para sempre, o tempo não poderá corroê-las nem alterá-las.
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