Mundo Órfão
MUNDO ÓRFÃO
Alécio Cunha[1]
Como gestar poesia na era dos shopping centers, top models e celebridades sem cérebro? Em seu décimo livro, o paulista Régis Bonvicino tenta responder a essa questão sem sair pela tangente. Encara o problema, criando seu mais enfático e visceral trabalho. O minifúndio da palavra e o latifúndio da linguagem são as armas geográficas do autor em Página órfã, que está sendo lançado pela editora Martins, de São Paulo.
Não é luta vã a trilha encarada pelo poeta. A orfandade não se limita somente à página. Vivemos um tempo igualmente órfão, marcado pela mediocridade em seus mais variados níveis, onde o reality show pauta o proseio de botequim, e fama e lama tornam-se almas gêmeas, sinônimos de escrota simbiose. Neste momento entra em cena a poesia. Sem utopia ou sinal de ingênuo romantismo. É pegar para capar, embate do perene contra o cada vez mais efêmero e descartável.
A página órfã de Bonvicino vem ao encontro do cheiro do ralo, odor contemporâneo, tema sutil do filme de Heitor Dhalia, baseado na novela de Lourenço Mutarelli, com Selton Mello, película que mostra com humor o absurdo e a ausência de limites da prepotência humana. Tanto os versos de Bonvicino quanto as imagens de Dhalia/Mutarelli escancaram situações que, no comodismo nosso de cada dia, preferimos deixar de lado, fingir, esquecer, passivos plenos.
O poema-título da obra de Bonvicino despe as contradições do urbano e funciona, de modo metonímico, como introdução ao método poético do autor, experimentando não o roçar fronteiriço entre verso e vida, mas a sua contaminação mútua, explícito diálogo entre essência e experiência. O poeta sabe que “um semáforo não cabe num parágrafo, cúmplice passivo dos mendigos”. Mas indigna-se com imagens que fogem a qualquer tipo de controle racional.
Vejam só este exemplo de reconstrução do cotidiano vil através da astúcia da palavra. “Na calçada, uma caçamba/ objetos abandonados/ Nem uma dupla cabeça de Hermes/ entenderia aquele homem/ dormindo na cadeira/ sobre o entulho e o lixo,/ beco sem saída, página órfã,/ nunca, imitação de vida.” Radical em seu construto poético, Régis Bonvicino não tem medo de transformar em personas poéticas, ainda que regadas pela força da negatividade, figuras extraterritoriais ao universo literário como modelos.
Como em “Um poema”: “A top-problema aproveita/ para publicar um poema/ dedicado a Peter Doherty/ na British Literary// Você adora as drogas mais do que a mim/ É por isso que derramo tantas lágrimas/ É por isso que não tenho forças para mais nada// Um papparazzo fotografou sua silhueta esbelta/ numa praia misteriosa/ la dolce vita/ maiô preto/ ela deixou um dos seios à mostra”.
O mesmo universo fashion é ironizado em “Roupoema”. A poesia ganha a passarela, raro nicho do poético. “Seus dentes poderiam fazer merchandising/ de maconha/ embora façam de Colgate/ dos lóbulos caem pingentes/ to sell ou vender/ seus pés não pisam em piso falso/ e andam descalços/ num clipe ou num filme/ seus pés anunciam/ uma sandália de plástico imputrescível/ Vênus putibunda/ bebe de tudo, nos bastidores,/ agora se parece às vezes/ com um travesti/ também agora Hollywood está a seus pés/ […] ouve tecno e hop hop/ digita no papelote/ Não sabe escrever nada/ Além do próprio nome”.
[1] Publicado no jornal Hoje em Dia, Belo Horizonte/MG