ENTREVISTAS DE MICHAEL PALMER E CHARLES BERNSTEIN
A RÉGIS BONVICINO, EM 2000
THE PROMISES OF GLASS, DE MICHAEL PALMER, NEW DIRECTIONS, 2000
REPUBLICS OF REALITY, DE CHARLES BERNSTEIN, SUN & MOON, 2000
“The Promises of Glass”, décima sétima coletânea de Michael Palmer, e “Republics of Reality”, reunião de oito livros, escritos e lançados entre 1975 e 1995, de Charles Bernstein, acabam de sair nos EUA. Ambos os autores são bastante conhecidos e reconhecidos não só em seu país como na Europa. Michael é hoje, aos 57 anos, quase uma unanimidade: poucos não o consideram o maior poeta de sua geração. Bernstein, aos 50, tem, em virtude de ser o principal pensador do mais recente movimento de renovação das letras norte-americanas, a chamada “Language Poetry” (anos 80), recepção mais dividida, apesar de ser respeitado e estudado por críticos de primeira grandeza, como Marjorie Perloff .
Há traços comuns no trabalho dos dois: a “desobediência” aos padrões médios do “status quo” literário, sejam “mainstream” ou “vanguarda institucionalizada”, um construtivismo com toques de improvisação, à “cool jazz”, o surrealismo francês, e uma visão crítica, política, digamos, à esquerda, do presente — o que não é desprezível, num país como os EUA, onde a maioria dos poetas limita-se a escrever, em “versos livres”, uma poesia de tom confessional, moderada, ou a copiar os “Beats”, dos anos 60. Eles não estão, portanto, voltados para a expressão fácil. Ao contrário, assumem-se como integrantes de uma tradição de inovação que se quer viva , vinculada às questões da materialidade da linguagem e de sua capacidade de recriar o mundo.
Cada um à sua maneira. A estratégia de Palmer é a de se opor, até certo ponto, à própria vanguarda norte-americana deste século (Gertrude Stein, Ezra Pound, William Carlos Williams, Black Mountain College), para dialogar com inovadores de outras línguas, como o chileno Vicente Huidobro ou o peruano Cesar Vallejo ou com os franceses. E para, sobretudo, dialogar com Ludwig Wittgenstein e Walter Benjamim, numa operação “iluminista” de busca de valores, para o confronto com a barbárie contemporânea. Seu poeta guia é o Paul Celan das ruínas da civilização. O crítico Joshua Clover observa, ao comentar “The Promises of Glass”, que a poesia de Michael transforma o “lírico” convencional em “uma lírica analítica”, que explora as contradições entre o filosófico e o pessoal, entre sentidos e sexualidade, entre a história e a falta de perspectivas.
A recusa da poesia como mera produção de palavras é, também, uma das características da obra de Bernstein. Todavia, seu estratagema é o de radicalizar-se dentro da própria tradição e cultura norte-americana — com uma poética de desconstrução de clichês, próxima aos fatos do dia-a-dia e à fala, com inflexões de ironia e humor, embora se proponha, em muitos momentos, paradoxalmente, como “barreira” ao imediatamente legível. É, neste sentido, “uma lírica do feio (unbeautiful)”, que vai de encontro ao “bom gosto” e aos temas ditos elevados.
Observa Milton Santos, tratando das consequências negativas da globalização, que o aumento do número de letrados é proporcional à diminuição do número de intelectuais, que, ao contrário do que se poderia esperar deles, cada vez mais se calam. Afirma, com razão, que, além de silenciarem, traem seu principal papel: o de estarem conectados permanentemente com o porvir. A reflexão funciona para o atual estado de coisas da poesia brasileira — onde a proliferação nunca antes vista de poetas corresponde apenas à reprodução de “formas” literárias mortas, desatadas das tensões do presente e de intenções, utopias, para o futuro. Por isso, por exemplo, as questões relativas ao “porvir” vem sendo sistematicamente boicotadas. É constragedor que isso ocorra num país que forjou sua identidade e cultura a partir de movimentos renovadores, como o romantismo, de Álvares de Azevedo ou Sousândrade, ou o modernismo de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. É a respeito desta questão, a da inovação como superação do presente, que estes dois poetas falam ao Jornal da Tarde.
ENTREVISTA DE MICHAEL PALMER A RÈGIS BONVICINO
Régis Bonvicino: O crítico Joshua Clover, do Village Voice, escrevendo recentemente sobre “The Promises of Glass”, diz que sua poesia é feita de “cálculo e balanço”, como se o Velvet Underground tivesse se apaixonado por Ludwig Wittgenstein e não por Andy Wharol. Você concorda com essa afirmação?
Michael Palmer: “Cálculo e balanço” soa muito bem. Quanto a Wittgenstein e o Velvet Underground já é não é tanto matéria de concordância mas de especulação. Com o seu mais que severo viés antimodernista musical, não tenho como imaginar que instrumentos Wittgenstein teria tocado, caso tivesse encontrado esta banda. Haveria um lugar para os pianos da casa de sua infância? Haveria um lugar para as cordas de Brahms entre os ritmos e harmonias fraturadas do grupo? Existiria Wharol sem Wittgenstein ? Recorro às Investigações Filóficas: “Volto-me para a pedra e a dor vai”.
RB: Como você a questão da vanguarda e do nacional, na poesia, hoje?
MP: Parece-me que todo o vanguardismo mundial e o neovanguardismo existem em relação, em conversação um com o outro. Isto é, eles desafiam qualquer forma simplística de nacionalismo (seja de direita ou de esquerda), do mesmo modo que rejeitam o provincianismo. Neste sentido, eles compartilham com a velha e infinita circulação da “canção”. Não há assim nenhum “locus” privilegiado para a atividade vanguardista e tampouco um sítio que tenha precedência ou preferência em relação a outro.No lugar do “lugar”, há o sopro, no lugar da linha, há a dobra, no lugar da “parada”, há a mudança. Embora, claro, cada um desses movimentos siga suas peculiaridades culturais, suas necessidades políticas e seus desenhos sociais e desejos.
RB: Como você a questão da identidade em poesia?
MP: Identidade, em poesia, não é simplesmente isto ou aquilo e ela não é nunca idêntica a si mesma. Ao contrário, é um contínuo processo de conquista, de superação. O centro é sempre um “outro lugar” ou um “nenhum lugar” (nowhere), que é também “agora-aqui” (now-here).
RB: Há algum sentido para a idéia de vanguarda em arte?
MP: Estamos distantes das vanguardas históricas da primeira metade do século e também dos movimentos neovanguardistas dos anos 50 ou dos anos 70 e 80. O vanguardismo, em sua forma específica, como um agente subversivo das artes, e ou atividade de antiarte, pode se transformar num “produto” do século XX – não há como saber. Todavia, devemos lembrar que há algo próximo ao eterno no impulso das vanguardas: o desejo de apurar nossos meios de percepção através da imaginação poética, o desejo de retirar a linguagem e o sinal de seus hábitos, de retirar a forma da “conformidade” e desfazer e refazer o “fazer vazio”. Tais estímulos são o legado do modernsimo e do vanguardismo e, para mim, permanecerão tanto quanto se queira manter a possibilidade de se fazer trabalhos com sentido mais profundo existirem.
AUTOBIOGRAPHY
All clocks are clouds.
Parts are greater than the whole.
A philosopher is starving in a roominng house,while it rains outside.
He regards the self as just another sign.
Winter roses are invisible.
A and Not-A are the same.
My dog does not know me.
Violins,like dreams,are suspect.
I come from Kolophon,or perhaps some small island.
The strait has frozen,and people are walking — a few skating — across it.
On the crescent beach,a drowned deer.
A woman with one hand,her tights around your neck.
The world is all that is displaced.
Apples in a stall at the streetcorner by the Bahnhof, pale yellow to blackish
red.
Memory does not speak.
Shortness of breath,accompained by tinnitus.
The poet’s stutter and the philosopher’s.
The self is assigned to others.
A room from which,at all times,the moon remains visible.
Leningrad cafe : a man missing the left side of his face.
Disappearence of the sun from the sky above Odessa.
True description of that sun.
A philosopher lies in a doorway,discussing the theory of colors
with himself.
the theory of self with himself,the concept of number,eternal return,the
sideral pulse.
logic of types,Buridan sentences,the lekton.
Why now that smoke off the lake?
Word and thing are the same.
Many times white ravens have I seen.
That all planes are infinite,by extension.
She asks, Is there a map of these gates?
She asks,Is this the one called Passages,or is it one of the west?
Thus released,the dark angels converse,with the angel of the light.
They are not angels.
Something else.
Michael Palmer
AUTOBIOGRAFIA
Todos os relógios são nuvens.
Partes são maiores que o todo.
Um filósofo faminto num hotel,enquanto chove lá fora.
Ele observa o self apenas como um outro signo.
Rosas de inverno são invisíveis.
Gelo tardio às vezes hino.
A e Não-A são iguais.
Meu cachorro não me cconhece.
Violinos,como sonhos, são ssuspeitos.
Venho do Kolophon, ou talvez de uma ilha minúscula.
Estreito — gelado —, pessoas andando, algumas, patinando, através dele.
Na praia larga,um cervo afogado.
Mulher com uma só mão,coxas ao redor de sua nuca.
O mundo é tudo o que está deslocado.
Maçãs numa barraca de esquina — via Bahnhof,pálido amerelo ao vermelho,escurecido.
A memória não fala.
Respiração ofegante,acompanhada de zumbidos.
A gagueira do poeta e do filósofo.
O self assinalado aos outros.
Um quarto de onde,o tempo todo,a lua permanece visível.
Café de lleningrado: um homem perdendo o lado esquerdo de seu rosto.
Desaparecimento do sol do céu acima Odessa.
Verdadeira descrição daquele sol.
Um filósofo reclina-se ao pé da porta,discutindo a teoria das cores.
consigo mesmo.
a teoria do self consigo mesmo, o conceito de número, eterno retorno, o
impulso sideral.
lógica dos tipos, sentenças de Buridan, o lekton.
Por que agora aquela fumaça sai do lago?
Palavra e coisa são iguais.
Corvos brancos tenho visto,tantas vezes.
Que todos os planos são infinitos,por extensão.
Ela pergunta, há um mapa desses portões?
Ela pergunta, É este o designado Passagens,ou é aquele do Oeste?
Alívio,anjos negros conversam com anjos de luz.
Eles não são anjos.
Alguma coisa além.
Tradução: Régis Bonvicino
ENTREVISTA DE CHARLES BERNSTEIN A RÉGIS BONVICINO
Régis Bonvicino: O Brasil tem, de modo geral, a França e a Europa como centros de referência mais importantes em poesia. Como um poeta americano vê este fato? Isto acontece na cultura americana?
Charles Bernstein: Não. Os Estados Unidos vivem uma espécie de adolescência narcísica prolongada e não está definido se querem crescer, virar adultos, ou não. Talvez um EUA amadurecidos seja pior. De qualquer modo, o mundo parece, ironicamente, preferir a adolescência americana a qualquer outra coisa: é o nosso principal produto de exportação cultural. Acho que os jovens, que se sintonizam pela primeira vez com a poesia podem ser “esmagados” pela quantidade de material “americano” imediatamente disponível, que pode ser bem variado, tanto no presente como nos últimos 200 anos. É difícil encontrar uma saída desta profundidade e diversidade (como uma areia movediça cultural). Mas se deixarmos as generalizações de lado, por mais interessantes que elas possam ser, há, é claro, certa poesia francesa (não conservadora), pelo menos para mim, existindo em uma dança crucial com a nossa própria poesia. Veja, alguns poetas franceses como Claude Royet-Journoud, Emmanuel Hocquard, Olivier Cadiot, Anne-Marie Albiach, Dominique Fourcade lêem em grande detalhe os “americanos” e esse diálogo permite correspondências únicas. Mas estas são afinidades estéticas específicas.
RB: O outro lado da questão é como a poesia é vista no panorama americano?
CB: Panorama é uma coisa engraçada aqui. Esta palavra está normalmente relacionada a árvores e ao habitat natural, isto é, ao pano de fundo para o qual ou através do qual olhamos. A poesia não faz absolutamente parte do panorama americano nesse sentido: ela se dissolve notavelmente ou então está camuflada. No entanto, existem “cenas”, pequenos grupos de pessoas, e a poesia está cheia delas. Nos encontramos mas é como se tivéssemos sensores escondidos, aqueles não sintonizados acabam perdendo oportunidades. Mesmo quando elas estão bem diante de nossos olhos.A razão é que a poesia raramente faz parte da cultura de massa e cultura de massa é o que a maioria das pessoas “vê”. Mas isto permite que a poesia prospere em pequena escala e em suas próprias condições, o que por sua vez dá à poesia uma profundidade e complexidade que geralmente não encontramos na cultura de massa (ainda que às vezes possa ser muito boa).
RB: Em sua opinião, o que é ser um poeta de vanguarda?
CB: O termo “avant-garde”, embora não haja outro, sempre me incomodou: não me encontro adiante de nada mas talvez próximo, na vizinhança, atento: se você lidera, você deve saber onde está indo, mas eu só sei onde não estou indo. Penso que a política, num poema, tem a ver com o modo como ela — poesia — entra no mundo, como ela faz sentido, sua relação com o estilo, como sua “forma” funciona em contextos sociais… mais do que o “conteúdo” aberto do poema. Às vezes, sinto-me cansado de ideologia e gostaria de abrir mão dela totalmente. No entanto, me parece que quanto mais abro mão, mais ela me sufoca. Escrevo para poder respirar.
RB: O que foi o movimento Language Poetry, nos anos 70 e 80?
CB: Eu diria, respiração artificial. Todavia, antes artificial do que nenhuma. Na poesia, não há nada além de artifício.Em meados dos anos 70, muitos de nós começaram a compartilhar intensamente algumas preocupações que tínhamos:queríamos uma poesia que, se não necessariamente “adiantada” no tempo, fosse ao menos do e no tempo, que reagisse às complexidades da cultura com todos os recursos que a língua pudesse fornecer, que estivesse cansada das piedades do sentimento humanista ralo, ou que, digamos, tentasse reimaginar as possibilidades do sentimento através da sensação material da língua. Diria ainda que a invenção poética é o que faz a poesia ativamente suscetível e necessária: mas nunca se sabe como aquela invenção será (caso contrário não seria invenção) ou onde nos levará. Isto significa, significou, não tentar fazer poemas “melhores” mas reinventar poesia (sempre, e não pela última vez). Senão, por que escrever? Uma pergunta que sempre me faço e cada vez mais.
RB: Você tem relações com o Brasil e a poesia brasileira. Fale um pouco sobre isso.
CB: Sou um estudante da poesia brasileira, tentando vencer o obstáculo da minha ignorância da língua portuguesa. Até a década de 80, o poeta brasileiro que eu melhor conhecia era Haroldo de Campos, cujo trabalho admiro . Também havia lido com imensa admiração João Cabral de Melo Neto. Traduzi dois de seus poemas logo depois de sua morte, em outubro do ano passado. Entre as produções mais recentes, admiro também a antologia “Nothing the sun could not explain” (1997), na qual pude ler Paulo Leminski e Torquato Neto e muitos outros. Sinto-me feliz de pertencer ao conselho editorial da revista Monturo, de Santo André, dirigida pelo jovem poeta Tarso de Melo. Devo mencionar também que eu, assim como muitos outros, ouço muita música brasileira, talvez mais do que qualquer outra recentemente. Eu compartilho do entusiasmo global por Jobim e considero “Desafinado” uma espécie de tema. Também adoro Astrid Gilberto e João Gilberto bem como Elis Regina, Maria Betânia e Caetano Veloso. Para mim, a música brasileira é estimulante devido ao seu ritmo variado, simultâneo, em camadas, algo que me interessa na poesia. Parece-me uma alternativa à batida única e monótona do rock and roll.
DE”PARSING” (1976)
was pealing an apricot
was pealing an american
was pealing a jug, sitting,
setting, the apricot
was pealing a fig
was pealing,
very sorrowful, she said,
in itself
was standing
was luminous
was a kirelian photoilumination
was beautiful
“it’s more than that, than anything,” ___ explained joyfully
& sat down
head bare,
& more than it
does not change
though its patterns
vary, recur
in illuminations
or occlusions, amid a
field, grid
the mind is
as
jug, fig, luminous
was aztec
was sock
was misplaced
hence polyhedron, figment,
lemon, limit
vagrancy
was a sign
was painted
was glassy
& slliped in it
Charles Bernstein
repicava um damasco
repicava um americano
repicava um jarro, sentando,
assentando, o damasco
repicava um figo
repicando,
com pesar, ela disse,
em si
estava de pé
estava luminoso
era uma fotoiluminação kireliana
estava lindo
“é mais do que isso, do que qualquer coisa” ___ explicou feliz
& sentou
cabeça nua
& mais do que isso
não muda
embora seus padrões
variem, recorrentes
em iluminação
e oclusão, em meio
ao campo, grade
a mente é
como
um jarro, figo, luminoso
era asteca
tipo soquete
estava perdida
daqui, poliedro, figmento,
limão, limite
ao acaso
era um signo
estava pintado
era vítreo
& esvaiu-se em si
Tradução: Régis Bonvicino