O palco é o espaço público urbano degradado; os mendigos afloram como atores principais que não atuam; nos bastidores, os novos utopistas desfilam seu moralismo bem-comportado
Marcelo Ridenti
Com o livro “a nova utopia” (Quatro Cantos, 2022), o poeta Régis Bonvicino dá sua contribuição mais recente à literatura. E também para expressar o tempo social que estamos vivendo. Uma era globalizada, de desigualdades crescentes e naturalizadas, de miséria e de mendigos, decadência e desesperança no Brasil e no exterior. Tudo isso aflora em cada página de escrita seca e racional, mas sensível, com a escolha cuidadosa das palavras.
O sentido geral do livro é de falência e desolação. O palco preponderante é o espaço público urbano degradado; os mendigos afloram como atores principais que não atuam; nos bastidores, os novos utopistas desfilam seu moralismo bem-comportado. O poeta, deslocado, escreve e dirige a peça.
Bonvicino vê a arte e a cultura no cotidiano duro das pessoas, e o traduz na contramão do sentimentalismo etéreo. Ele pretende fugir do “clichê do poema além da página/ decassílabo falso” (poema “A call to kill”). Registra a barbárie por toda parte, refletida nos países centrais e nos periféricos, como no poema “Notícia da Síria”. Espelhamento também no passado em distinto lugar, como em “Outro tempo espanhol”, que remete à guerra civil.
O título “a nova utopia” é irônico, pois a atmosfera é distópica, a exprimir uma época sem lugar para sonhos. O sentido do livro pode ser sintetizado nos versos de Pasolini traduzidos pelo autor: “como os primeiros atos da Pós-História,/ que testemunho, por conta da idade,/ da borda extrema de qualquer época/ sepulta. As vísceras de uma mulher morta/ pariram um ser Monstruoso./ E eu, feto adulto, vagueio/ mais moderno que todos os demais/ a procurar irmãos, que não existem mais”.
Um fosso entre o poeta vanguardista parido pela História e o restante das pessoas numa sociedade fragmentada, do salve-se quem puder. Esses versos concluem “Tradução”, a partir do poema “Eu sou uma força do passado” do cineasta e escritor Pier Paolo Pasolini, crítico radical da perda dos valores culturais da Itália com o advento da sociedade de consumo. Artista dos estertores de uma era que se foi junto com seu assassinato brutal em 1975, mesmo ano do primeiro livro de Bonvicino, Bicho Papel, em edição do jovem autor. Presságio do tempo atual de “nova utopia”, de repetição eterna do presente na lógica voraz das mercadorias e do dinheiro, materializada em 14 poemas salpicados ao longo do livro com esse mesmo título, “A nova utopia”, a compor frases que exploram o limite entre verso e prosa.
A contagem das palavras usadas na obra permite construir dados quantitativos que podem ser uma porta de entrada para a análise qualitativa. Revela-se a subjetividade do poeta diante da decadência social objetiva à sua volta. Espraiam-se a destruição e o bafo da morte sobre a vida, que entretanto prossegue nas ruas.
O substantivo mendigo(a/s) aparece 44 vezes, há 6 referências aos noias e 9 às putas. Brasileiros ou estrangeiros, eles perambulam pelas cidades decadentes: a palavra rua surge 36 vezes, ao lado de substantivos como calçada (24), avenida (9), marquise (9), praça (8), asfalto (4), viaduto (3). Um total de 93 inserções, associadas a outras 83 como lixo ou palavras próximas: garrafas, latas, plástico, bueiro.
O poeta capta os vestígios ao redor, em meio a cenas com ratos, urubus e corvos (22 citações); merda, fezes, urina, cheiro e fedor (29); cachorros solitários a vagar (14). Atmosfera de devastação: o verbo morrer e derivados – somados a cadáver e suicídio – chegam a 50 registros. Além dos 64 que remetem a porradas, armas, guerra e polícia. Em contraste, o verbo nascer e derivados aparecem só duas vezes, em ambas o sentido é negativo: “urubu bica pedregulho/ mato nasce em telhado” (poema “Sermão”); “Mendiga, exposta às inclemências meteorológicas, usa bebês sedados para pedir esmola: ‘uma boa medida seria criar carrocinhas para recém-nascidos e crianças em situações de perigo’.” (poema “A nova utopia (10)”). Esta última frase/verso é próxima da prosa, contrastando com a concisão da anterior e de vários poemas em que escrita ganha em síntese, por vezes aproximada de cortes cinematográficos – como nos filmes de Eisenstein –, por exemplo: “corte, tesoura, um talho no sutiã/ tesoura roçando os seios”, do poema “Ficção”.
Surgem ao menos 30 vezes palavras como dinheiro (8 registros), moeda(s – 7), mercado (5), juros (5), supermercado (4), dólar (1). “Para o novo utopista, o mendigo nas ruas é o rato de laboratório para implantação sibilina e efetiva do Estado mínimo liberal” (poema “A nova utopia” (9).) A crítica ao sistema está encarnada sobretudo nos novos “utopistas”, mencionados 62 vezes, fora outras dezenas de entradas para “utopia”. A eles “o establishment só permite diferenças vendáveis, lucrativas” (“A nova utopia (10)”.)
A série de 14 poemas sobre a nova utopia apresenta versos que não raro lembram formulações sintéticas de Guy Debord¹, ao destacar o império das aparências nas sociedades contemporâneas, nas quais “a nova utopia é um símbolo de distinção” (poema 12), e tratar de sociedades em que tudo se transformou em negócio, até mesmo as utopias: “O novo utopista sabe que o foco passou do produto para a causa: a causa é um produto” (poema 8). Ou: “Sonhar, sonhar, sonhar, é o grande negócio da vida!” (poema 7). Mas já não há espaço para a utopia presente na obra de Debord nos anos 1960 e 1970².
Alcir Pécora² valoriza a “poesia barra-pesada de Régis Bonvicino”, autor de “poemas extraordinários” de “mastigar pedras”, expressando “ruínas dos centros das grandes cidades”. Seus “poemas de horror” exporiam “o cerne falido do Brasil como projeto civilizatório europeu”. Sua poesia teria uma “fatalidade própria, de iluminar vidas perdidas, destinos miseráveis, situações abjetas a que está obrigada a anotar”³. Em direção parecida, o cubano Ricardo Alberto Pérez elogia a “consciência mista” incomum de Bonvicino na “obsessão pela linguagem e vocação de estar na rua, envolvendo-se constantemente nos mais díspares acontecimentos”4.
Tratando de obra anterior do poeta, Iumna Simon admitia que ela é “referência para dar conta da conjuntura de guerra e luta social que atravessamos”. Mas, em sentido contrário ao de Pécora e Pérez, atribuiu ao escritor um “ativismo que não articula (sobrepõe apenas) as imagens do horror econômico”. Identificava certo “pitoresco negativo” e a “espetacularização da catástrofe”, da qual ele suporia estar fora5. Ela acompanhava Fabio Weintraub, que viu um “caos moralizado” na obra Página órfã, em que Bonvicino acreditaria nos seus poderes de poeta “para se separar da barbárie”6. O título do texto citado de Pécora é uma resposta indireta a esse parecer: “Ninguém está a salvo, muito menos o poeta”.
O novo livro dá elementos para mostrar que o autor se coloca dentro da barbárie coletiva. Seu interesse pelo tema não é fugaz ou artificial. A começar pela dedicatória do livro, em memória de sua filha recentemente falecida em situação violenta. O envolvimento existencial na barbárie pode ser aferido em diversas passagens. Por exemplo, é possível que o poeta se volte criticamente também para si mesmo quando escreve: “O novo utopista é, por isso mesmo, contra os cost killers das empresas, a economia da partilha, tipo Airbnb, que torna rentável a casa e o próprio vaso sanitário. Basta de escravos de ganho ou de aluguel. É contra o mercado da compaixão, mas afirma que há um holocausto por dia em cada prato com ou sem comida” (“A nova utopia (11)”). Também no poema “A nova utopia (10)”: “O novo utopista não considera a arte um passatempo de final de semana.[…] Para ele, a guerra supremacista não está apenas nos rifles e fuzis de gringos. […]. O novo utopista não é um consumidor reclamando de um produto com defeito e ou de um político como se ele fosse um produto com defeito”.
Nessa última frase/verso, o “não” poderia ser tirado, e o texto funcionaria do mesmo jeito. O novo utopista pode defender quaisquer causas, até opostas. Isso é indiferente, pois tudo é fagocitado pelo sistema, com o qual se acomoda. Ele é tratado com ironia, beirando o sarcasmo, por exemplo, em “A nova utopia (1)”, há frases/versos como: “A nova utopia é o coro afinado dos descontentes. É um ex-guerrilheiro, de porte avantajado, homem forte do governo.[…] A nova utopia exalta a sustentabilidade das empresas. […] A nova utopia tem logo e slogan. […] Condena corruptos. É um ex-ladrão. […] É uma miríade de franquias de poetas premiados. É um poema à altura de seu tempo”. Um tempo estéril em que “O novo utopista corta os pulsos para atestar que, em suas veias, não jorra Coca-Cola” (“A nova utopia (6)”). Essa é uma das tantas frases/versos que se aproximam da forma discursiva da prosa. Mas em geral com um sentido poético condensador de significados, como em: “É um morador de rua revirando uma lata de lixo seletivo” (“A nova utopia (2)”).
Ao tratar criticamente da “nova utopia”, a obra tem implicações políticas evidentes, não só pela indignação, mas também porque ela vem junto com certo fatalismo diante da reprodução inevitável do sistema que se pereniza. Aponta para o fim da viabilidade de utopias e de romper com a lógica social destruidora que acompanha a generalização do neoliberalismo, cada vez mais naturalizado no cotidiano das pessoas. A crítica corrosiva à nova utopia deixa subentendido que tampouco haveria lugar para as velhas, como as elaboradas por anarquistas, socialistas e comunistas. A perspectiva é distópica, vale reiterar. Do autor e/ou da própria realidade em que se insere? O livro expressa impasses não apenas da sociedade brasileira, mas da própria humanidade. Caberia cobrar do poeta propor uma solução?
Talvez seja ingênuo falar novamente em “princípio esperança”, para usar a antiga formulação de Ernst Bloch. Mas o filósofo a elaborou na era nazista, ainda mais devastadora que a atual. Enquanto se rumina coletivamente alguma resposta para os dilemas do tempo presente, vale a pena ler Bonvicino, com ou sem “pó de estrelas nos olhos” (poema “Epitáfio”). “Peixes se despregam do cascalho/ o vento alastra um fedor de fezes” (“Cartão postal”). A leitura perturba, “é como se um disparo seco/ abafasse o som de meus sapatos” (“A call to kill”).
Marcelo Ridenti é professor titular de Sociologia, IFCH/Unicamp. Autor de livros como “O Segredo das Senhoras Americanas — Intelectuais, Internacionalização e Financiamento na Guerra Fria Cultural” (Unesp, 410 páginas) e do romance histórico “Arrigo” (Boitempo, no prelo).
Notas
¹ Guy Debord. A sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
² Alcir Pécora, “Ninguém está a salvo, muito menos o poeta”. https://sibila.com.br/poemas/deus-devolve-o-revolver/13683, 21 de fevereiro de 2020.
³ Ricardo Alberto Pérez, “Régis Bonvicino: testigo de que “Dios devuelve el revólver”. Rialta Magazine, 26 agosto de 2021. https://rialta.org/regis-bonvicino-testigo-de-que-dios-devuelve-el-revolver/
4 Iumna Simon, “Situação de sítio”. Novos estudos Cebrap 82, novembro 2008, p. 151-165. https://www.scielo.br/j/nec/a/xL9jz3tdmhYzZ5R7X9vctXv/
5 Régis Bonvicino. Página órfã. São Paulo, Martins, 2007. Fabio Weitraub. K Jornal de Crítica, n.12, junho de 2007. https://www.academia.edu/36603739/Caos_moralizado_k12_junho2007_pdf
6 Ernst Bloch. O Princípio Esperança. Trad. Nélio Schneider, Werner Fucks. Rio de Janeiro,Contraponto, 2005.