Conheci León Ferrari por intermédio de Regina Silveira e Júlio Plaza, no Centro de Estudos Aster, criado e dirigido por eles, por Walter Zanini e um outro Ferrari, o Donato. Em 1975, Júlio havia feito a capa e o projeto gráfico de uma revista que editei, de número único, intitulada Poesia em Greve, e, pouco depois, tornamo-nos editores de uma nova publicação chamada Qorpo Estranho, que durou três números. Vejo, agora, no belíssimo livro León Ferrari: Retrospectiva. Obras 1954-2006, organizado por Andrea Giunta, no ensaio de Aracy Amaral, que participei do evento Arte pelo Telefone, com Paulo Leminski e León Ferrari, entre outros. Em conseqüência, imagino que o conheci, a León, ao redor de 1982, ano do evento, que cuidava de experimentar poemas para serem ouvidos justamente pelo telefone e/ou para serem vistos em imagens de videotexto. Neste ponto, quero reportar-me a uma observação do poeta e artista plástico italiano Nanni Ballestrini, que afirma que os anos 1960 foram um período (e não só uma década) extraordinário para a literatura, as artes visuais e a música, equiparável, para ele, ao Renascimento italiano, ao Siglo de Oro espanhol ou ao Romantismo europeu. Ainda vivíamos todos, os mais novos como eu e os mais velhos como Ferrari, sob o influxo renovador dos anos 1960 naquele começo de 1980.
Tenho uma hipótese para a interpretação da obra magnífica, inovadora e definitiva de Ferrari, esse engenheiro de formação e profissão por vários anos, que construía casas com seu pai e que nunca freqüentou escolas de arte, a não ser esporadicamente em Roma e em São Paulo, onde foi aluno de litografia de Regina Silveira. Interpreto-a como a combinação desse poderoso influxo “sessentista”, interdisciplinar, anarquista, mediado pelo construtivismo inerente do engenheiro, com uma base literária. Revendo as inúmeras reproduções, de alta qualidade gráfica, de trabalhos constantes desse volume, que conta com ensaios da organizadora Giunta, de Luis Felipe Noé e outros, pensei a obra de León como o questionamento da “máquina operante” da sociedade e de suas “leis”. Veio-me à tona a idéia de labirinto, explorada por Franz Kafka em O processo (1925), no qual a “culpa” torna-se labiríntica justamente por “não possuir conteúdo legal ou causas psicológicas suficientes”, de acordo com Erich Heller.2 Em estratégia diversa, Ferrari, ao entrar no labirinto, passa a se confrontar com a lei e com a psicologia da “máquina operante” da sociedade e da arte. Para Kafka, de acordo com Heller, a “culpa” seria um fenômeno irredutível; já para Ferrari, a “culpa” parece ser um fato imputável aos poderosos deste mundo, que ele quer programaticamente combater. Veja-se Última ceia (2000), onde, ao lado do presépio tradicional, no caso, com estatuetas brancas, ele as confronta – situando-as do outro lado da mesa – com um orangotango e ratos de plástico, todos negros. Citei um trabalho recente, mas o ímpeto anti-religioso de Ferrari vem de longe, do começo dos anos 1960, quando, em trabalhos como História de minha morte (1965) – um verdadeiro poema, porque León é também um poeta –, já se lia ironicamente escrito o vocábulo “episcopado” em sua trama arâmica de letras cortantes.
León começou, creio, como ceramista e escultor e, em suas inúmeras esculturas de arame e aço, já criava suas matérias-primas sob o conceito de afronta ao labirinto político da “máquina operante” do mundo. Basta que se veja um trabalho como Homem (1964): um retângulo, em forma de caixa, entrelaçando cobre, bronze e aço, findando, ao alto, em farpas metálicas pontiagudas. Observo, nessa peça, uma crítica ao construtivismo puro e limpo, estetizante, crente na linha evolucionista do progresso. Nesse início dos anos 1960, aflora o León poeta de que falei (amigo de Rafael Alberti), como em Escrito en el aire (1964), nanquim sobre papel, no qual há um poema em letras minúsculas, quase ilegíveis, com “recados” a la William Carlos Williams. Também são dessa época seus livros de artista (que seguiriam sempre) e outros trabalhos ímpares, como os dois Sem título de 1962, também nanquim sobre papel, nos quais o artista parece escrever – mais do que pintar – com arames retorcidos. Não se pode deixar de apontar o labirinto político em Gagárin, escultura de aço inox (1961); ao mesmo tempo que, digamos, aceitava o progresso, contestava-o ao preencher o círculo que simboliza o espaço com as mesmas farpas cheias de arestas, ameaçadoras – lancinantes. León é o artista do “páthos do labirinto”, da qualidade e da originalidade, que talvez tenham advindo, entre outros fatores, de sua não-educação formal em arte, que lhe deu imensa liberdade. Veja-se suas peças impressas com carimbo metálico em tela, que reproduzem multidões de homúnculos, como em Sem título (1983), um trabalho notável que revela, por meio dessa estranha labirintite, a angústia do século, sua anomia.
Labirinto, agora de A metamorfose (1912), do mesmo Kafka, quando vejo o trabalho intitulado A justiça (1991), no qual uma galinha viva, presa numa gaiola, defeca sobre uma balança. A galinha, ruiva, olha fixamente para o espectador, desconfiada. Não é preciso explicitar o caráter crítico da instalação e de sua inflexão kafkiana (ou durrenmattiana) em si e às avessas: a de combate à lei vigente. Trata-se do ungeziefer de Ferrari; trata-se de seu Gregor Samsa, que, durante o sono, transformou-se num inseto, num bicho rastejante, numa praga – praga, no caso, que Ferrari utiliza politicamente como adjetivo desqualificador das “regras” deste mundo e de sua justiça. León é um criador menos utópico do que cético: não crê na justiça humana nem na divina. O que dizer então de outra instalação como Surrealismo Novo Mundo (1992), na qual um lagarto passa ao lado de um imenso pênis de cerâmica. Gregor Samsa Jr. puro, original e contundente. E o que dizer ainda de Deuteronômio (1994), um manequim feminino, caligrafado com sentenças labirínticas – circulares, espiraladas – do quinto livro do Velho Testamento. Eros e “culpa”; deuteronómion, em latim eclesiástico, quer dizer “segunda lei”. O corpo esbelto da mulher/manequim vence os dizeres de Moisés e os condena, numa segunda lei, irônica, a transformar a musa em mulher ainda mais atraente. A Bíblia como amuleto erótico.
Entro agora nas colagens mais explicitamente políticas de Ferrari; muitas delas são rebarbativas: ele não é um artista de produção pequena e seu instinto o leva a ser prolixo, em termos de número de trabalhos. Existem colagens cheias de humor, como a que forja um encontro do papa com Hitler, e colagens violentas e tecnicamente belas como Jeová (1989), na qual uma mulher masturba um homem, à beira de um felatio. Há colagens plasticamente excepcionais, como Amai-vos (1997), na qual escreve, em braile – técnica que vai empregar em outras colagens –, exatamente “amai-vos”, sobre uma reprodução de um trabalho de Clovis Trouille, na qual uma freira, de coxas carnudas expostas, beija a outra, vestida, e com o crucifixo caído, num banco ao lado do jardim de inverno do convento. A letra braile confere concretude, verossimilhança à cena, acentuada pelo branco e preto da reprodução e pelas esquadrias das janelas, em sombras. Há uma série de peças absolutamente originais, agora, já em outro âmbito, que não o das colagens. Refiro-me a Liquidificador (2000), na qual estatuetas de santos são postas dentro de um liquidificador ultrasonic. Uma das hipóteses possíveis para interpretar essa montagem é que a Argentina gloriosa e promissora do passado (anos 1920/30), católica fervorosa e ainda persistente no imaginário portenho, deve ser liquidada; não há somente o sentido anti-religioso, óbvio em León; há um sentido antinostálgico. Outra montagem impressionante é Xadrez (2004), um tabuleiro de xadrez com a figura do candomblé frente a frente com réplicas de Jesus, todas de pé sobre um vaso sanitário, para tentarem ficar na mesma altura que a divindade afro-brasileira. O trabalho revela as distâncias entre as culturas e a hipocrisia do pensamento politicamente correto, além da disposição de combate: ao pé de Exu, há uma caveira, retratando também Exu como o mal e Jesus como o bem.
León Ferrari: Retrospectiva. Obras 1954-2006, de Andrea Giunta, é uma contribuição decisiva para, como ela mesmo escreve, “desvendar os dispositivos que iluminam a obra desse artista, seus temas, suas estratégias, seu questionamento do poder, por meio do humor e da ironia”. Para findar a resenha, retorno ao Kafka de A metamorfose. Na colagem Baratas (2000), o artista cola inúmeros escorpiões e baratas de borracha numa estatueta da Virgem Maria: apenas seus olhos passivos e bondosos permanecem visíveis. O que significa isso, além da desconstrução religiosa? A Virgem, como Gregor Samsa, “despertou” certo dia transformada num híbrido, a la Jeronimus Bosh (um dos vetores das experiências ferrarianas), parte divindade, mais da metade insetos rastejantes e, como observa Heller sobre Kafka, o que vale igualmente para Ferrari, “despertou” como um desafio a toda a ordem intelectual e cultural vigente e a toda forma de compreensão familiar, que nos leva – digo eu – à descrença no já existente e à renovação. Que León siga avant-garde, e iconoclasta a sua maneira única, que o torna um dos principais artistas contemporâneos, e não só da América Latina.
1.Sobre o livro León Ferrari: Retrospectiva. Obras 1954-2006, organizado por Andrea Giunta (São Paulo, Cosacnaify/Pinacoteca do Estado/Imprensa Oficial, 2006).
2.Erich Heller, Kafka (trad. James Amado, São Paulo, Cultrix/Edusp, 1976).
Para ver as imagens comentadas, vá para http://sibila.com.br Sibila 12, Home