Régis Bonvicino lança o livro de poemas ‘‘Céu-Eclipse’’, o oitavo de sua obra
O poeta Régis Bonvicino, também ensaísta e tradutor exímio, está de volta às livrarias, agora com ‘‘Céu-Eclipse’’ (34 Letras, 120 págs., R$ 19,00), reunião de poemas onde, de novo, nos dá o gozo pleno de seu trato incomum com a palavra. A palavra em Régis é mais que signo comunicante – parece, às vezes, existir por si, com luxo de artefato intransitivo desafiando o espaço em branco da página com sua incômoda (e insistente) lucidez beligerante. E aí, onde, de fato, melhor diz e comunica. É, sem favor, uma das vozes mais expressivas da poesia contemporânea brasileira – poeta até o sumo, até a raiz profunda com que ser poeta desafia a mornidão mediocrona dos versejadores deste país de serestas e guarânias.
Não poderia ser diferente desta vez – ‘‘Céu-Eclipse’’, que traz como subtítulo a instigante qualificação de ‘‘poema-idéia’’, autêntico sinal de alerta para a indispensável visada de conjunto que se exige de sua leitura, não é, como tem sido a prática, um saco-sem-fundo de versos disparatados enfeixados num volume; não, senhores, o que temos aqui é um livro orgânico em todos os sentidos, baixo o compromisso sagaz, que é dele a maior marca, de se constituir num todo indissociável. A poesia brasileira de mais recente extração dificilmente ‘‘pensa’’ o projeto ideo-arquitetônico de um livro, useira e vezeira em formatar em volume poemas-de-ocasião, ‘‘datados’’ e circunstanciais, e é aí que Régis Bonvicino diverge do coro-dos-contentes, desde sempre senhor, o poeta, de seu cálculo e de sua medida.
Da ‘‘família’’ de Robert Creeley, Larry Eigner ou mesmo de Charles Bernstein, pontas-de-lança da melhor poesia norte-americana de agora, e não sem razão em intercâmbio constante com eles, ‘‘retraduzindo-os’’ aos tristes trópicos, (e sendo por eles ‘‘retraduzido’’), Régis Bonvicino leva o poema a um grau extremo – aquele em que, sem perder a ‘‘contenção’’, que é, do poema, em última instância, a sua razão de ser, radicaliza os ‘‘limites’’ da poesia, tornando-a, mais que o flash de um insight, o desassombro do que audazmente narra, com palavras-flor, estiletes, síncopes e saltos sobre o abismo. Assim, num exemplo colhido ao léu, (pág. 43): ‘‘Um desânimo se aproxima/e outro/por perto/se insinua//da sala/do sexto andar/atravessa a/ folha// que cai ao longo/da rua./E outro/agora// íntimo/sem qualquer/confronto – /meio-dia// alarde ou/cor/só porque começo o/outono.’’
Síntese de recomeços, ela própria um ‘‘discurso’’ contra o ‘‘passadismo’’, que, moderno ou pós-moderno, parece marcar larga parte da produção poética tupiniquim, a poesia de Régis Bonvicino, e a deste livro-idéia em particular, põe em xeque, de modo agudíssimo, o vezo provinciano do nosso poetar sem conta, frequentemente desossado, arbitrário, sem saber a que veio nem com que propósito.
De ‘‘Together’’, o poema que dá início a esta ‘‘microepopéia’’ de luz e sombra que é ‘‘Céu-Eclipse’’, com sua ‘‘atmosfera’’ hopperiana, à última peça, ‘‘Letreiro’’, melancolia ‘‘urbânica’’, indissociável do mais incurável pessimismo, este livro, leitor, está longe de ser o que os cronistas antigos, ao referirem um livro de poesia, costumavam chamar de ‘‘florilégio’’. Este livro dói, mas não pensem agride, a palavra fraturada e o gosto pelo ‘‘incompreensível’’ com que as neo-vanguardas se atrapalham – do começo ao fim de seu périplo narrativo, vai desfiando, com simpleza de palavra exata, e o gozo do vocábulo mais limpo, de cara erguida, a sua tristeza de cão.
Sabendo que todas as palavras estão gastas, e que, por isso mesmo, viva a palavra, o poeta Régis Bonvicino, com ‘‘Céu-Eclipse’’, se empenha sobretudo numa direção que, generosa, parece indicar caminhos – ali onde a palavra, de velha, não há mais, importa que, redimensionado, o fazer textual recupere, pela ‘‘arte da linguagem’’, a sua capacidade de reordenar o mundo em nós, e o que o mundo muda entre a luz e a sombra de mais um dia: ‘‘A página, pétala/única/se insinua/em branco// aguardar./É passagem/de pássaros / e chuva// abrupta/como êxtase/intenta uma// certeza/folhas lembram/de guardar o que.’’
O inútil de cada um, a cidade aflita, nossos móveis e inutensílios, a sombra eclipsada dos dias longos; entanto – sina do poema -, esta insistência de céu, ainda que céu-eclipse; e a tempestade lunar.
CÉU-ECLIPSE, Régis Bonvicino, 34 Letras, 120 páginas, R$ 19
Wilson Bueno, escritor, autor, entre outros livros, de Mar Paraguayo (Iluminuras), Cristal (Siciliano) e Pequeno Tratado de Brinquedos (Iluminuras).
Gazeta do Povo – Domingo, 29 de Agosto de 1999